quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

extraORDINÁRIO

"Cada coisa ordinária é um elemento de estima"
(Manoel de Barros, em Matéria de Poesia)




Não sabia que sentimento predominava quando, após anos de resistência, conseguira efetuar uma mudança de aparência tão simples...

Era, a um só tempo, alegria e espanto, raiva e encantamento.

Sentia que, em algum ponto, a carapaça começara a ceder em sua dureza, de forma tão tímida quanto ousada. Há muito o invólucro já não protegia, mas a aprisionava.

Reconhecidademente não foi nada de outro mundo. Nada inconcebível, de rara ocorrência, passível à genialidade, extraordinário. Antes, um ato corriqueiro, previsível, cotidiano como "feijão com arroz", "pão com manteiga". No entanto, aí residia todo o pasmo de si.

O ordinário - gerneroso por natureza - insistia em lhe bater à porta. Mas desta vez, como de costume, não o deixou escapar. Com a força de todos os braços, abraçou a possibilidade viva de experimentá-lo em sua grandeza. Certificava-se, enfim, que o extra é e está, sim, no ordinário.

Quão doce é ser comum.

E agora, quem sabe, qualquer dia aquele banho de mar...

(VaneideDelmiro)

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Primeiras notícias

João poetizou que a neve é leve (e eu o imaginei brincando...).

Thiago declarou que não sente apenas falta, mas saudade, vocábulo exclusivo da língua portuguesa.

Carol nada falou, no entanto pousou delicado seus olhinhos de jabuticaba na webcam e abriu um claro sorriso.

As primeiras notícias foram assim: leves, saudosas, reluzentes.

(VaneideDelmiro)

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Para quem fica...

(Arte: Mariana Massarani)



CANÇÃO DO EXÍLIO PARA QUEM FICA

(Para Thiago, João e Carolina)


Minha terra tem crianças
De onde vejo brotar
A alegria e o carinho
Que em outro lugar não há

O afeto é o mais doce
Mais quente são seus abraços
Seus sorrisos são mais vivos
Bem mais vivos seus olhares

Quieta, sozinha, à noite
Eu me ponho a relembrar
Brincadeiras e peraltices
Que em outro lugar não há

Não permita Deus que eu viva
Sem vê-las um instantinho
E sinta mais uma vez
O morno de seus carinhos

Que um ano passe rápido,
A tristeza rapidinho
E que ao nos encontrarmos
O céu retorne, azulzinho...


(Tia VaneideDelmiro)

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Ces't la vie (I)


"O Brasil é uma
República Federativa
cheia de árvores
e gente dizendo adeus."

(Oswald de Andrade)



Indelével

Dentro do envelope a notícia esperada, mas não naquele momento, tão-já.

Foi esse sentimento de surpresa que os impediu de sentir qualquer outro que lhes fossem claro: alegria, tristeza, saudade antecipada...

E naquela primavera calorosa seus pensamentos também ficaram como que congelados, talvez um presságio do frio europeu que estava por vir.

Não. Definitivamente eles não seriam meninos sem pátria, porque não se fica nem se é indiferente ao Brasil, porque o Brasil é indelével, como amor de mãe - e de Tia também.

(VaneideDelmiro)



Meninos sem pátria: alusão ao livro de Luiz Puntel (Coleção Vagalume), lido em 1989.

sábado, 18 de outubro de 2008

Recusa da Palavra

"O que eu vi, sempre, é que toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo."
(Guimarães Rosa / Grande Sertão: veredas)



Será possível ficarmos imunes a casos como o da menina Isabella e, mais recentemente, o da adolescente Eloá?

Que estranhos sentimentos brotam tal qual erva daninha quando nos deparamos com a fragilidade humana?

Não quero poetizar a violência porque diante dela não há poesia possível. E se for para enfear o verso que lhe seja dada uma rima pobre, o que seria infinitamente mais belo que qualquer gesto contra a vida.

Mas o que fere a vida? Arremessar uma criança covardemente do sexto andar? Disparar uma arma contra quem se diz amar? Atos ferinos, feridas incicatrizáveis. Barbáries estarrecedoras ferem a vida. Ações vis, de notória crueldade também. Geram consenso, desejo coletivo de vingança, traduzido num perigoso “fazer justiça com as próprias mãos”.

Mas a vida, de tão frágil, a vida não precisa tanto, se fere com muito menos. Sutilezas do falar e do calar atingem a alma humana, podendo mesmo mortificá-la.

Em meio ao bombardeio midiático da última semana sobre o “seqüestro de Santo André” a fala do jovem Lindemberg Alves, “o seqüestrador”, em entrevista concedida a uma emissora de TV, me chamou atenção. Segundo ele o seu ato teria decorrido do fato de sua ex-namorada negar-se a conversar após o término do relacionamento. Um de seus amigos, num flash televisivo, atribuiu o seqüestro ao que denominou “recusa da palavra”.

Não convém aqui especular acerca da legitimidade das razões que impeliam Linderberg a falar e Eloá a não querer ouvi-lo. Tampouco cair no movediço terreno do “se”: se ele tivesse falado, se ela tivesse escutado, se... etc. etc. etc. O se, como bem indica sua consoante, é sempre sinuoso.

Convém, sim, pensar sobre essas duas dimensões – o falar e o ouvir – cuja força mesmo para nós, falantes e ouvintes, ainda nos é desconhecida, pouco desvendada.

Às vezes, dizem, fala-se por falar... Mas o falar pede o seu complemento, ainda que seja uma escuta íntima, de si para si.

Penso que o sentido do falar e do ouvir se esvai quando se dá por imposição. Impor silêncio a quem necessita falar é, num certo sentido, um ato de violência. Impor a fala a quem não deseja ouvi-la também. Eximir-se da palavra quando ela abre portas a esclarecimentos, antes mesmo de ser violento, é um ato covarde. Guardá-la na manga como um trunfo para, no momento oportuno, endereçá-la com furor pacífico (“palavras duras em voz de veludo”*) é reconhecidamente de uma requintada crueldade. Ouvir alguém que apresenta uma perspectiva diferente da sua pode ferir como bala a certeza e a arrogância de muitos.

Decerto que a palavra não é infalível, por vezes ela própria é fonte de desentendimentos. Curiosamente no caso do "seqüestro de Santo André", a despeito de todo arsenal policial, a palavra dotada de seu estranho poder alquímico era a principal arma dos negociadores, no entanto algo falhou e "o tiro", para usar expressão corrente, "saiu pela culatra".

Meu repúdio ao silêncio que não engendra a paz e a palavra que não constrói laço.

E que a nossa vontade de viver e deixar viver não seja também seqüestrada, porque não há preço para tamanho resgate.

(VaneideDelmiro)



“A minha alma tá armada e apontada para cara do sossego / pois paz sem voz / paz sem voz / não é paz, é medo / às vezes eu falo com a vida / às vezes é ela quem diz / qual a paz que eu não quero conservar / pra tentar ser feliz...
(...) É pela paz que eu não quero seguir admitindo”

(A Minha Alma / O Rappa)



* Verso da composição Cuide Bem Do Seu Amor (Paralamas do Sucesso)

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Em meu socorro...

Ontem, no Programa Entrelinhas (TV Cultura), tive um primeiro contato com a poesia de Mariana Ianelli, poeta paulista que apresenta uma produção consideravelmente recente, mas de grande consistência. Assim me pareceu.

Hoje, visitando o seu site, confirmei minha impressão inicial e já pus os seus livros na lista de futuras aquisições poéticas.

Infelizmente, por uma questão de memória deficitária e não seletiva, não consigo resgatar algumas de suas falas no tocante à poesia, mas lembro bem de dois fragmentos.

No primeiro referia-se aos "benefícios impalpáveis da poesia..." Desnecessário comentar.

No segundo, disse textualmente "a minha solidão socorre a tua" e a sua fala foi, pra mim, uma espécie de mão estendida; uma voz emprestada a quem tendo-a, não consegue (ou deseja) mais emiti-la.

(Arte: Oswaldo Guayasamín)




Voz de ninguém

Tão somente um gesto
E não o fiz.
Que muitos houvessem tentado,
Apenas eu resisti.

Homens que marcham, que se deixam levar,
Porque vivem.
Estranho guerreiro, eu não marcho.
Corpo morto, já não me carrego.

À frente de cem milhas agrestes,
Como se contra o nada, respondi:
- Estou aqui e aqui perduro.
Isto que hoje fala em mim, em mim se cala.

Mariana Ianelli
Site oficial: http://www2.uol.com.br/marianaianelli/

sábado, 27 de setembro de 2008

Sábado morto...

"Vendo novas madrugadas
Minha mente, e meu corpo
Nesse sábado morto
Eu quero lhe entregar
Eu quero lhe entregar..."

(Roberto Carlos / Erasmo Carlos - Sábado Morto)



Reaprender o Sábado

É lição estendida também ao domingo.
Educar os ouvidos ao silêncio das máquinas adormecidas e talheres engavetados.
Acostumar os olhos ao fantasma azul do horizonte.
Imprimir na pele as impressões da ausência.
Desentender de amanheceres, do cheiro da casa, dos mistérios do tempo, da cumplicidade dos cômodos.
Implorar à memória anestésicos esquecimentos e ir especializando-se nessa matéria ácida e crescente, chamada saudade.
E eu sequer falei das palavras, devoradas pelo teu silêncio.


Saudade padrinho, toda saudade (11 meses...)



“O senhor sabe? Já tenteou sofrido o ar que é saudade? Diz-se que tem saudade de idéia e saudade de coração...”
“(...) o senhor querendo ir, então vai, mesmo me deixa sentindo sua falta”

(João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas)

sábado, 13 de setembro de 2008

Queda Livre


"(...) a gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesma nunca se deve de tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a idéia e o sentir da gente; o que isso era falta de soberania, e farta bobice, e fato é."
(Guimarães Rosa - Grande Sertão: veredas / Arte: P. Picasso)



Não acreditasse na força das palavras, eu mesma me arrepiaria com o que o que hoje seria capaz de escrever sobre raiva, mágoa, culpa, rejeição e desafetos do gênero.

Definitivamente, não me assusta a possibilidade de escrever a respeito, mas sim a dureza com a qual poderia fazê-lo, o que talvez me trouxesse sentimentos tão ou mais danosos em relação aos que já estava sentindo.

Passadas algumas horas, o peito ainda pulsa desordenado. Sei que a raiva, a que tanto me pediram, não foi embora, mas busco nas palavras um pouco de serenidade e, talvez, alguma elaboração.

Lembro que a uma certa altura do poema Tabacaria, o poeta (Álvaro de Campos) declara "(...) vou escrever esta história para provar que sou sublime”. Talvez seja isso que eu pretenda com esta postagem: provar que (ainda) sou sublime, a despeito de toda raiva e descontrole que a motivou.





QUEDA LIVRE


“Passarinho cai de voar, mas bate suas asinhas no chão”
(Guimarães Rosa – Grande Sertão: veredas)


Em geral é assim: o afeto pousa e as palavras voam. O vôo traduz a intensidade e a beleza do afeto.

Pode ser um vôo pleno, bonito toda vida ou um silencioso planar.

Um vôo liberto: asas que reconquistam um espaço perdido, ressignificam o azul do céu e o sentido do voar.

Um vôo tímido, apreensivo do próprio sentir. Ou até mesmo um vôo ousado, dando tudo de si, talvez por desconhecer o limite entre a doação e a insensatez.

O vôo em queda livre não pode ser descartado e é assustador quando sua motivação traduz uma ação auto-destrutiva em detrimento de uma atitude desafiadora.

A raiva alimenta o motor, agita as asas, estraga o vôo, embaça a visão, desloca a paisagem.

Pena não ter tido uma pane por falta de combustível. É certo que alguma coisa dentro de mim explodiu.

(VaneideDelmiro)

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Só hoje vi Helena...








(Arte: Amedeo Modigliani)




À Helena (in memorian)


Hoje, só hoje, vi Helena
como nunca tinha visto.

Helena não era de Tróia
- apesar de sua beleza.
Helena não protagoniza
o romance machadiano.
Helena era tão-só-grandemente
a esposa de meu primo Lúcio
e a mãe de seu filho, Luquinhas.

Mas hoje, só hoje, vi Helena:
a tez branca, muito límpida
e a paz cristalizada
em seu quase sorriso mudo.

Não pudemos dizer nada,
nenhuma palavra trocamos.
Ela, muito discreta,
eu mesma emudeci.

Pensei em nossos 34 anos
(nos dela e nos meus)...
Mas o que importa a idade
se nos marca o irreparável?

(VaneideDelmiro)


"Morre-se! As matemáticas eu entendo mais" (Adélia Prado)

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Enigma...


É verdade. Nunca decifrei o que o itálico de minha letra queria destacar, mas o aprecio em silêncio, afinal tanta inclinação parece mesmo querer dizer algo. Mas o quê?

Nem louca – que é modo mais puro de se aproximar da verdade – eu revelaria (caso o soubesse, evidentemente).

Ainda assim, aos curiosos de plantão, espiando disfarçada e sorrateiramente atrás das cortinas da amizade; àqueles que me lançaram, sem nenhum pudor ou piedade, suas inocentes perguntas ou comentários, seus olhares reinaugurando a Inquisição, a estes eu diria, satisfazendo suas almas invasivas, que “inclinar-se” é "um modo de se lançar", "ir em busca de", "estar disposto a", mas também significa – e por que não o seria? – "um deviar-se da linha reta", ou, poeticamente falando, um "abismar-se por desejo, quiçá sem vontade".

Agora, se puderem, pensem por si só.


(VaneideDelmiro - Julho/2007)




"E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
surpreenderá a todos não por ser exótico
mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
quando terá sido o óbvio"


(Caetano Veloso - Um índio)



Fonte da gravura: www.cosmonauta.com.br/fernando/

terça-feira, 26 de agosto de 2008

O sonho, a realidade e o travo...



Depois de dias sem escrever uma única linha, achei que a "Ladra" (minha última postagem) acabou roubando bem mais que o meu sábado, e isto eu penso há dias. Acho que de tanto pensar, acabei sonhando à noite passada com um assalto aqui em casa. Eram três ladrões: uma mulher e dois homens.

Ela investia pela janela, enfiando seus braços entre os espaços da grade tentando alcançar objetos no interior de um dos quartos. Eu acordava com o barulho de coisas sendo mexidas e descia a escada para verificar o que acontecia. Assim que me deparava com a cena eu me armava com um martelo e espancava o braço dela, na tentativa de expulsá-la. Puxa, por que será que ninguém acordou com aquela barulheira toda...

Nem reparei se ela foi embora, se levou algo, o quanto se machucou, porque logo em seguida tive que agir numa nova investida, desta vez na área que antecede à cozinha. Era um ladrão tentando abrir os três cadeados da grade. Desta vez eu arrastava tudo que podia pra trás da porta, tentando criar uma barreira que impedisse a sua abertura. Eu gritava tentando chamar a atenção dos vizinhos. Ninguém respondia, ninguém levantava. Num átimo de segundo pensei: quero o nome desse tarja preta.

Daí a pouco lá estou em outro cômodo da casa, se outro quarto ou a sala, eu não lembro, mas o esforço era o mesmo: o de impedir a entrada. Não havia falas nem rostos identificáveis, apenas a movimentação, a correria, o coração disparado, o sentimento de solidão, o esforço para manter intacto o ambiente, a integridade das pessoas. Que agonia, meu Deus!

Acordei em sobressalto. Cadê a água que trouxe aqui pra cima, cadê a água? Tinha certeza que estava ali na mesa. Pronto, levaram a água também. Nem acendi a luz, com medo da realidade. Tanta janela nesse quarto. Tanto frio nesse quarto. Fui procurando no tato. Encontrei. Goles de camelo num deserto. Calma! Foi um sonho. É certo que nada está seguro, mas foi um sonho.

A realidade foi constatar ao chegar em casa hoje, à noitinha, que roubaram a lâmpada fluorescente da garagem. Não é a primeira vez. Coincidência? Pressentimento? Fato?

O sonho ficou como lembrança (objeto para análise).

A realidade como um chamamento à cautela.

O texto postado – LADRA – como uma espécie de travo... Não sei se consigo explicar. Algo como provar e não degustar, tocar e não sentir, olhar e não ver, saber o que precisa (e deve) ser feito e não agir.

Acho que preciso de uma antiácido... E de boas doses de mudança de atitude.

(VaneideDelmiro - Arte: Miró)

sábado, 9 de agosto de 2008

Ladra












(Arte: Mariana Massarani)



Sábado, a rotina se repete. As sensações também. Enquanto as obrigações se amontoavam por toda a casa, eu tentava inutilmente (re)agir propondo-me coisas de aparência banal, mas em essência vital...

Quem sabe alguns instantes em frente ao mar, olhando o horizonte até perder-se (ou mesmo achar-se) no azul do olhar.

Pra alma endurecida, um pôr-de-sol ao som do Bolero de Ravel bem podia funcionar.

Um caminhar errante, descompromissado, traria a impressão de uma trégua do tempo, que finalmente decidiu também relaxar.

Abraço festivo de sobrinho é antídoto certo pra algumas dores aliviar. Analgésico de poder curativo similar só mesmo um ombro Amigo tem a ofertar.

Seguir de carro, de ônibus, de trem, a pé pra algum lugar onde se deseje realmente estar.

Pizza, à noite, com a família não se deve dispensar. Para além das trocas calóricas, estão as afetivas.

Sentir o cheiro de quem teu coração faz pulsar. E pulsar.

Ouvir a voz, a única possível, capaz de embalar teu sono mais improvável, mesmo se no meio da música desafinar.

(...)

Clarice Lispector iniciou uma de suas crônicas declarando: “acho que o sábado é a rosa da semana...” É poético, Clarice, mas há um tempo não consigo cultivar jardins.

Admitir, enfim, que o sábado em suas possibilidades de florescimento não é subtraído de mim pelo cotidiano de afazeres, mas eu sim, eu mesma, ladra que sou, o tenho roubado de mim.

(VaneideDelmiro)




Lispector, Clarice. Sábado. In: A Descoberta do Mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Apaixone-se...

"Muita coisa importante falta nome"
(G. Rosa / Grande Sertão: veredas)




Acreditei ingenuamente que a escrita fina deslizando na folha macia pudesse suavizar palavras, mas temo ter me equivocado.

A impressão é a de que acordei e, no entanto, todas as palavras dormem um sono profundo, sem que eu possa despertá-las. Então, eu fico querendo dizer sem saber como fazê-lo.

Perdão e desculpa são palavras que me envergonham: as usei tantas vezes. Banalizaram-se? Não, as banalizei. Mas quando as pronuncio, acredite, ainda são sinceras.

Saudade, palavra superdimensionada. Bobagem, ninguém vai morrer ou esquecer, mesmo parecendo que sim.

Atenção e carinho desenham-se de tantas formas... É preciso alguma sensibilidade.

Cuidado, palavra terna, porém perigosa. Tanta ternura pode ser esmagadora.

Egoísmo, uma espécie de sobrenome; tenho descoberto... Palavra com raiz forte assim é difícil de arrancar. Sofre o jardineiro, sofre a rosa e os espinhos também não deixam de sentir.

Má interpretação, expressão afermentada em excesso. Rainha dos desentendimentos.

Amizade, palavra que não cansa, mas é preciso reconhecer, sim, um certo cansaço. Afinal o é que a amizade sem a espontaneidade no falar e no sentir? Um protocolo de ações de uniforme limpo e engomado, sem o menor sinal de contato humano.


Amor, palavra que cala qualquer outra...

(...)

Estou indo embora.

Desculpe (que vergonha!!!) a minha inabilidade pra te compreender. Não posso extirpar as tuas dores, tampouco te livrar das intempéries. Mas a cada dia tenho a consciência monstruosa de que te proteger de mim ajudaria bastante. É terrível fracassar tantas vezes.

Desejo-te VIDA: ampla, verdadeira, iluminada.

Apaixone-se! Por uma causa, uma pessoa, uma idéia, um sentido, pois em nenhuma outra situação se é tão forte, contraditoriamente.

(VaneideDelmiro 2006/2007)

"Das mais bonitas mentiras..."












(Arte: Mariana Massarani)



A Fé Solúvel

É, me esqueci da luz da cozinha acesa
de fechar a geladeira
De limpar os pés,
Me esqueci Jesus!

De anotar os recados
Todas janelas abertas,
onde eu guardei a fé... em nós

Meu café em pó solúvel
Minha fé deu nó
Minha fé em pó solúvel

É... meu computador
Apagou minha memória
Meus textos da madrugada
Tudo o que eu já salvei

E o tanto que eu vou salvar
Das conversas sem pressa
Das mais bonitas mentiras

Hoje eu não vivo só... em paz
Hoje eu vivo em paz sozinho
Muitos passarão
Outros tantos passarinho
Muitos passarão

Que o teu afeto me afetou é fato
Agora faça me um favor

Um favor... por favor

A razão é como uma equação
De matemática... tira a prática
De sermos... um pouco mais de nós!

Que o teu afeto me afetou é fato
Agora faça me um favor

Um favor... por favor

(Fernando Anitelli - O Teatro Mágico)

domingo, 3 de agosto de 2008

Pingos nos is



Is contra Gotas

A torneira tagarela
seu in-ter-mi-ná-vel
go
te
jar.

Mas é da folha em branco,
taciturna,
o desejo de falar.

A luta mais desigual
é a que não se pode lutar:
se ao menos houvesse is
pra essas gotas pingar...



(VaneideDelmiro)

domingo, 27 de julho de 2008

Mudança de tempo...




Voltar lá é estranho, porque não consigo concebê-lo naquele lugar. Não o identifico ali, apesar da inscrição de seu nome na lápide. Não vejo seu bigode expansivo, não ouço sua voz de trovão, nem sinto a segurança tão certa vinda de suas mãos.

Mesmo assim, arrisquei uma conversa silenciosa, levando notícias do mundo de cá que, depois de sua partida, já nem sei se não é o próprio mundo de lá...

(...)

Oi! Como é que o senhor tá? Eu sei, nove meses se passaram... Uhm? Ah, são essas poças d'água pelo caminho, mas já vou subir a barra da calça. Pronto, assim... Melhorou?

Eu? Estou bem...

No trabalho? Por favor, não me repreenda. Tenho tentado, de verdade... Mas ainda chego atrasada no trabalho e, nessas ocasiões, não consigo olhar nos olhos dos colegas. Não convém explicar a noite mal-dormida. Quem acreditaria, dia-após-dia, noite-após-noite?

O caminho até o ponto de ônibus é longuííííííííssiiiiimo de lembranças, de quando íamos "jogando conversa fora", discutindo o noticiário, o aumento da gasolina, o trânsito, um ou outro fato pitoresco - nosso jeito de construir cumplicidade. Eram momentos aparentemente banais, mas eu sabia que deixariam um enorme buraco quando não mais pudessem acontecer. Eu tinha razão. Ao menos uma vez.

Todas às vezes que saio dirigindo, são tuas recomendações que me fazem companhia: "não ande ligeiro", "preste atenção na pista molhada", "cuidado onde estaciona", "é melhor não sair à noite", "volte cedo", "ligue avisando que chegou", "não dê carona a ninguém desconhecido..." Engraçado, eu que sempre andava sozinha, agora ando muito mais.

Tenho uma notícia que talvez não lhe agrade muito. Foi necessário cortar um dos pés de figo do quintal. Danou-se num crescimento desordenado, meio revoltoso. Já adulto - e com saudades - não foi possível contê-lo. Passado uns dias, trouxe da Bica uma muda de "brasileirinho". Sabe qual é? Talvez não esteja ligando o nome à aparência da árvore. Mas, certamente, o senhor já viu. Ah, pronto, tá vendo ali em frente, do outro lado daquele túmulo, logo ali em frente, aquela árvore com folhas verdes e amarelas? É ela. Gostou? Que bom! Puxa... É bem aqui em frente... Não, não foi nada não. É que agora, falando com o senhor, me dou conta. De quê? Ah, do quanto essa árvore é bonita...

Lá no quintal eu gosto de acompanhar o desabrochar de suas folhas. Criei o hábito, ao sair e ao retornar, de trocar dois dedos de prosa com ela, em silêncio, assim como agora. Apesar de ainda pequena, já traz beleza e um filhotinho de sombra, quando de repente tudo ficou feio e árido demais.

Vou toda sexta-feira. Faça chuva, faça sol. Mas não tão cedo quanto o senhor ia. A reforma no mercado central ainda não acabou e acho que se arrastará por alguns meses. O acesso melhorou em algumas áreas, a higiene ainda deixa a desejar. Mas o que mudou mesmo foi o doce das frutas... Alguma coisa apodreceu, azedou...

Ah, claro. Acendo as duas lâmpadas do quarto quando vou ler, escrever... Mas a janela nunca mais abri. Não tenho vontade... E depois, tá muito frio também. É que o senhor sempre foi calorento. Aquela proteção contra o vento na janela resiste bravamente à ação do tempo. Num vento mais forte seus estalidos dizem: ele passou por aqui e cuidou de você.

Algumas coisas lá em casa não consigo revisitar. Talvez, um dia... A luz do banheiro queimou, a extensão telefônica, que era puro ruído, retirei. Não faz mal. Tocava pouco, e agora cada vez menos.

Os meninos? Vão, sim, lá em casa. Adoram aquela escada. Criança adora uma escada. Acho que desperta à imaginação. Eu lembrei, agora, das minhas fantasias em torno da escada: será que lá em cima morava o Minotauro do Sítio do Picapau Amarelo? E Papai Noel, na falta de uma chaminé, desceria por ela? A escada era a travessia de minhas veredas. Tá vendo, fui m'embora escada a dentro ou será escada à fora?

É, eu falava dos meninos. Carolina é quem me visita com maior freqüência. Não se importa com a bagunça do meu quarto, acho que pra não me ferir, e brinca a valer. Ainda pede pra dormir. Na hora do jantar, o mesmo pedido: "tia, assa queijo de coalho pra mim!" Ela adora. Não se preocupe, não vou deixar faltar. Se ela continua magrinha? Então! Lembra do quanto a gente ria quando o senhor perguntava se faltava comida na casa dela...

Outro dia, ela perguntou se eu tava triste porque o senhor tinha ido embora. Na ocasião, João estava próximo e nem me deixou responder. Disse, no alto de sua sensibilidade e sabedoria, que saudade de quem a gente ama é pra vida toda. Aquele João...

Thiago, o senhor não acreditaria como ele cresceu. Acho que já ultrapassou a minha altura, nem sei mais que número calça. O preto tá ficando cada vez mais bonito e inteligente. E tudo que Carol não come, ele come em dobro.

Lembramos sempre do senhor.

O que eu tenho feito? Quais são os meus planos? Bem, não queria decepcioná-lo...

Ih, começou a chover forte. Espera um pouco, vou abrir minha sombrinha. Tá surpreso, né? Pois é, finalmente, aceitei seu conselho, comprei uma sombrinha e esta é primeira que estou usando...


Saudade, padrinho. Toda a saudade.

sábado, 26 de julho de 2008

À Padrinho...








NOCAUTE

Eu tinha tudo pra estar feliz...
Mas a boa nova da primavera passada
não anunciou cores.

E num só golpe
– ferino, mortal –
condenou-me a viver sem flores.


(VaneideDelmiro – 20/07/2008 - Arte: Miró)

sábado, 19 de julho de 2008

As aparências enganam...

(Arte: Mariana Massarani)


REC(L)USA

Hoje tem show do Osvaldo,
mas eu não vou.
Tem missa naquela igrejinha simpática,
mas eu não vou.
E tapioca na feirinha de Tambaú,
mas eu não vou.

Se o telefone tocar
definitivamente, eu não estou.
E quando chamam meu nome
– não é maldade –
só ignoro porque não sou.

(VaneideDelmiro)



Nota (Em 22/07/2008)
Embora não costume fazer alterações nos textos depois que são postados, hoje resolvi acrescentar a letra (L) ao título do poema acima. Agora tem-se: REC(L)USA. Isto se deu a partir de um comentário da minha querida amiga, Lourdinha, que soube perceber, em sua sensibilidade humanamente poética, o que eu não consegui dizer. Obrigada, Lourdinha! Tê-la como leitora muito me honra, mas poder partilhar de sua amizade é algo que extrapola o poder descritivo das palavras.

Gêmeos com ascendente em gêmeos

(Arte: Mariana Massarani)


EU SOU EM EXCESSSSO...
(VaneideDelmiro)

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Asas, palavra! Dá-me asas!



"A liberdade dá medo. Os homens são pássaros que amam o vôo mas têm medo dos abismos. Por isso abandonam o vôo e se trancam em gaiolas"

Rubem Alves, em Palavra de Grande Inquisitor. Foi também nessa crônica que encontrei um maravilhoso poema...


"Ah, quanta vez, na hora suave
Em que me esqueço,
Vejo passar um vôo de ave
E me entristeço!

Porque é ligeiro, leve, certo
No ar de amavio?
Porque vai sob o céu aberto
Sem um desvio?

Porque ter asas simboliza
A liberdade
Que a vida nega e a alma precisa?
Sei que me invade
Um horror de me ter que cobre
Como uma cheia
Meu coração, e entorna sobre
Minh'alma alheia

Um desejo, não de ser ave.
Mas de poder
Ter não sei quê do vôo suave
Dentro do meu ser"


(Fernando Pessoa / Arte: Mariana Massarani)

sábado, 5 de julho de 2008

Ninguém é mais que um nome...

Sem exagero, eu teria pelo menos uma cem razões pra falar desta postagem hoje, porque é algo que venho pensando há tanto tempo (e experimentando também). Mas o que de fato me motivou foi uma conversa, na hora do almoço, com minha mãe e minha irmã.

Alguma coisa muita essencial abalou o delicado terreno das relações amorosas. Evitamos. Ponderamos. Recusamos. Duvidamos. Sabotamos. Temos medo. Enfim, desacreditamos.

Por outro lado, “bombam” as salas virtuais de bate papo, os candidados e candidatas – expressão interessante – nos programas de relacionamento que se propõem a traçar o seu perfil amoroso e encontrar a sua cara metade, com pouco mais de meia dúzia de perguntas e respostas.

Pra dizer a verdade, eu nem lembro como essa conversa foi sendo desenhada na hora do almoço, muito menos como terminou, mas enfim, ficou reverberando na volta pra casa, me batendo aquele sentimento de "sem você sou pá furada" (verso de Rodrigo Amarante, em Paquetá).

O jeito mesmo foi retomar um poema engavetado, de escrita recente e impressões antigas. Sem nome até então, passei a chamá-lo Ninguém. Mas Ninguém é mais que um nome...




“Ah, se eu agüento ouvir outro não
quem sabe um talvez ou um sim
eu mereça enfim.

É que eu já sei de cor
qual o quê dos quais
e poréns dos afins
pense bem
ou não pense assim!"

(Paquetá / Rodrigo Amarante – Los Hermanos)





NINGUÉM

Ninguém virtualmente atraente,
geograficamente distante,
intelectualmente brilhante,
ou sexualmente fascinante...

Ninguém que ressurja das cinzas
com planos mirabolantes,
me prometendo agora
um futuro radiante.

“Ficar”, só se for de fora.
Aqui dentro uma lei impera:
é preciso amor PULsanTE.

Amor platônico? Sem chance.
Prefiro o amor plutônico
que balança o rabo
e, na minha chegada,
late exultante.

Pseudônimos, enigmas, entrelinhas:
deixo-os à cartomante
(ou a quem puder servir).

Careço dá vida aos sentidos
para não morrer de fome
na condição de mulher amada à amante.

Obs.:
Dispenso a mais fina etiqueta,
a conta bancária esbanjante
e todas as declarações
em outdoors, faixas, auto-falantes.

Só não abro mão de quem
verdadeiramente me encante
e faça da palavra, a flecha
E de mim, seu alvo constante.


(VaneideDelmiro)

quinta-feira, 3 de julho de 2008

"Porque o poeta é irmão do escondido das gentes..."

"E também é verdade que um escritor enquanto ser humano fica absorvido demais em tentar compreender a si mesmo e ao outro, e não suficientemente mestre do resto de sua vida. Hoje estou menos explícita, mas quem sabe se alguém vai entender o que pretendi dizer através deste meu poema:


Tudo vive em mim. Tudo se estranha
Na minha tumultuada vida. E porisso
Não te enganes, homem, meu irmão,
Quando dizes na noite, que só a mim me vejo.
Vendo-me a mim, a ti. E a esses que passam
Nas manhãs, carregados de medo, de pobreza,
O olhar agudo, todos eles em mim.
Porque o poeta é o irmão do escondido das gentes
Descobre além da aparência, é antes de tudo
LIVRE, e porisso conhece. Quando o poeta fala
Fala do seu quarto, não fala do palanque,
Não está no comício, não deseja riqueza
Não barganha, sabe que o ouro é sangue
Tem olhos no espírito do homem
No possível infinito. Sabe de cada um
A própria fome. E porque é assim, eu te peço:
Escuta-me. Olha-me. Enquanto vive um poeta
O homem está vivo."


(Hilda Hilst - Paixões e Máscaras, do livro: Cacos & Carícias & Outras Crônicas, 2007)

terça-feira, 1 de julho de 2008

Asa da Palavra - 1 ano

"O que fazes sem pensar aprendeste do olhar
E das palavras que guardei pra ti
(...)
O que sabes fazer agora
Veio tudo de nossas horas
Eu não minto, eu não sou assim"

(Renato Russo - 1º de Julho)



Hoje o Asa da Palavra faz exatamente um ano de existência... Não sei exatamente o que isto significa, pois tudo é ainda pura descoberta.

Eu não queria postar nada em tom de cumprimento, correria o risco de soar narcísico demais. Tampouco diria do que sinto.

No entanto, gostaria de agradecer, muito carinhosamente, a todos que pousaram aqui suas palavras e/ou também seus silêncios; aos que visitam rotineira ou esporadicamente este blog e lhe dão e renovam alguns de seus sentidos.

Não posso esquecer ainda que este espaço foi e tem sido um passaporte através do qual conheci blogs e pessoas muito interessantes, que revigoram a minha ligação com a Palavra, sem a qual eu não estaria muda, mas morta.



Embora a frase seguinte lembre tanto Clarice Lispector, é do Rubem Fonseca. Hoje, ela dá sentido a este blog.

"Fabricarei uma solidão externa para que a minha interna e enorme solidão não se quebre contra o mundo"

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Padrinho... Oito meses...

Há muito tempo, que não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias.

Eu mesmo envelheci: Olha, em relevo,
estes sinais em mim, não das carícias

(tão leves) que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a teu menino, que ao sol-posto
perde a sabedoria das crianças.

A falta que me fazes não é tanto
à hora de dormir, quando dizias
"Deus te abençõe", e a noite abria em sonho.

É quando, ao despertar, revejo a um canto
a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho.

(Carlos Drummond de Andrade / Carta)

terça-feira, 24 de junho de 2008

Insuspeitável (lacinho de cor)

Quando deu a hora,
como de costume,
eu cheguei sem cor.

Mas aquelas mãos
logo me trouxeram
um insuspeitável
lacinho de cor.

Um laço amarelo
com seu tom vibrante
veio e me enlaçou.

Posto em meu cabelo
de um jeito terno
o laço amarelo
me iluminou.

(VaneideDelmiro)
"(...) ELA SEM DÚVIDA ESTAVA A ALGUMA DISTÂNCIA DE ONDE DESEJAVA, DO PONTO DE VISTA VOCACIONAL, DOMÉSTICO E EMOCIONAL."

(David Bradshaw referindo-se a Virginia Woolf, na Introdução do livro A Casa de Carlyle e outros esboços, escrito em 1909).




"A CASA É ILUMINADA E ESPAÇOSA; MAS É UM LUGAR SILENCIOSO, QUE DEMANDA MUITA IMAGINAÇÃO PARA QUE SE POSSA VÊ-LO COM VIDA NOVAMENTE."

(Virginia Woolf)

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Crepita lá fora o São João de outrora



Chegou a hora da fogueira!
É noite de São João...
O céu fica todo iluminado
Fica o céu todo estrelado
Pintadinho de Balão...
Pensando no caboclo a noite inteira
Também fica uma fogueira
Dentro do meu coração.

Quando eu era pequenino
De pé no chão
Eu cortava papel fino
Pra fazer balão...
E o balão ia subindo
Para o azul da imensidão.

Hoje em dia o meu destino
Não vive em paz
O balão de papel fino
Já não sobe mais...
O balão da ilusão
Levou pedra
E foi ao chão.
(Lamartine Babo - Chegou a hora da fogueira)





Crepita lá fora
o São João de outrora.
Crepita...
Crepita...

Tinha a quermesse na praça,
na igreja, o novenário.

O ar era só fumaça
mas nem tosse ou pigarro,

e se o olho lacrimejava
era do brilho iluminado

Das fogueiras e dos fogos,
coloridas bandeirolas.

Entre prendas e adivinhações
descortinava-se o futuro:

casamento, rala-bucho,
bem-querer, malquerência.

Tudo tão combinado:
o teu chapéu de palha
com o meu vestido rodado,

Do pé-de-moleque à canjica,
Da paçoca ao milho assado.


A alegria-menina brincava por todos os lados:
na quadrilha, na palhoça,
no beijo que se pretendia roubado.


Crepita lá fora
o São João de outrora.
Crepita...
Crepita...


E se outrora pudesse
ser mesmo uma outra hora,
por que não agora?

(VaneideDelmiro)

sábado, 21 de junho de 2008

"Mas agora eu vivia em completo silêncio. (...) Eu não estava me encontrando com ninguém, não falava com ninguém, nem escrevia poemas"
(Orhan Pamuk - Neve)

sábado, 14 de junho de 2008

"Mas, diga-me, por favor, o que é que eu procuro?"

Não era uma visita desproposital, à toa, eu sei. Mas a minha esperança de encontrar edições antigas de livros de Antoine de Saint-Exupéry já andava meio capenga há algum tempo.

Depois que li Terra dos Homens, reeditado em edição especial pela Editora Nova Fronteira, em 2006, fiquei querendo ler outras obras do autor, impressionada como conseguiu, no referido livro, ser tão ou mais encantador quanto o foi nO Pequeno Príncipe.

Mesmo assim, com um fiapinho de esperança, fui ao Sebo Cultural da cidade (www.osebocultural.com.br) e vi aquele fio pequenino e frágil ganhando corpo na resposta positiva da atendente: “Há sim, senhora, temos três títulos. Vou providenciá-los!”

Pronto, em segundos, eu tinha um novelo inteirinho nas mãos e no coração todo o medo do mundo de que, ao voltar, descobríssemos que o sistema de dados nos enganara.

Confirmada a existência sublime, senti-me protagonizando a cena descrita por Clarice Lispector em Felicidade Clandestina – “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante”.

Valeu à pena esperar. Acabei adquirindo, na semana do meu aniversário, um exemplar que compilava duas obras do autor: Correio Sul e Vôo Noturno, editado por Abril Cultural e Victor Civita, há 34 anos atrás, no ano em que eu nasci. Coincidência? Encontro marcado?...

Quanto ao aspecto do livro, digo-lhes estar em bom estado de conservação. Mas isso informo só a título de curiosidade, porque o que importa verdadeiramente, nas raras oportunidades em que a vida permite, de forma tão sublime, ter o ser amante nos braços, é amá-lo.







"Depois, você me conhece, aquela pressa de partir outra vez, de buscar mais longe o que eu pressenti e não compreendia, pois eu era como um vedor que anda pelo mundo com a varinha trêmula na mão em busca de um tesouro.

Mas, diga-me, por favor, o que é que eu procuro? Por que, nesta cidade, onde estão meus amigos, meus desejos e minhas lembranças, eu sofro e me desespero apoiado à janela? Diga-me por que, pela primeira vez, não descubro a nascente e por que me sinto tão longe do tesouro? Qual é esta promessa obscura que me foi feita e que um deus desconhecido não cumpre?"

(Correio Sul - Antoine de Saint-Exupéry - 1974)

sexta-feira, 13 de junho de 2008

O sabor de nenhuma estação...



À Lourdinha, amiga de todas as estações do ano, e da vida...


Depois de declarada nossa fé em Antônio (♫que seria de mim, meu Deus, sem a fé em Antônio?♫), das divagações sobre a única sexta-feira 13 deste ano, das fases da lua, de mim que quero ser outras e da sopa quentinha forrando nossos estômagos... Depois de tudo isso, e do mais que não foi postado, mas ficou registrado, voltei pra casa, num friozinho típico de um quase-inverno, pensando em teus outonos, com o sabor de nenhuma outra estação...



O sabor de nenhuma estação

Como uma colheita
ela esperava no outono
o frutificar daquela estação.

O sabor de nenhuma estação
podia comparar-se ao outono.
Não depois de apalpada a sua casca
e degustada, em magusto, a sua polpa.

Sequer desconfiará
que o outono, em seus tons,
esconde a profundidade e a dureza
de um caroço.

(VaneideDelmiro)

terça-feira, 10 de junho de 2008

Exercício de auto-convecimento...

Hoje é meu dia
Quero alegria
Porque a tristeza
Mandei embora
Já era hora
Dela partir
E eu ficar aqui
Feliz agora

Eu sei que é triste
Ninguém resiste
Guardar no peito
Mágoa e saudade
Mas na verdade
Como eu sofri
No fim eu vi
Quanta maldade

Por isso resta
A grande festa
Sem mais tristeza
Que eu faço agora
Chegou a hora
Hoje é meu dia
Quero a alegria
Rompeu a aurora


Rompeu a aurora...
Hoje é meu dia...
Quero alegria...

(Não consegui encontrar o título da bela composição interpretada pela saudosa Marinês, a rainha do forró, e Margareth Menezes).

Aniversário...



No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

(...)

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

(Aniversário - Álvaro de Campos)

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Como colher a flor?




O poema a seguir, um dos meus prediletos, foi escrito em 1943 por João Cabral de Melo Neto. O Carlos a quem faz referência é também o grande poeta Carlos Drummond de Andrade.

Postá-lo aqui talvez indique náusea em demasia...



Difícil ser funcionário
Nesta segunda-feira.
Eu te telefono, Carlos
Pedindo conselho.

Não é lá fora o dia
Que me deixa assim,
Cinemas, avenidas,
E outros não-fazeres.

É a dor das coisas,
O luto desta mesa;
É o regimento proibindo
Assovios, versos, flores.

Eu nunca suspeitara
Tanta roupa preta;
Tão pouco essas palavras —
Funcionárias, sem amor.

Carlos, há uma máquina
Que nunca escreve cartas;
Há uma garrafa de tinta
Que nunca bebeu álcool.

E os arquivos, Carlos,
As caixas de papéis:
Túmulos para todos
Os tamanhos de meu corpo.

Não me sinto correto
De gravata de cor,
E na cabeça uma moça
Em forma de lembrança

Não encontro a palavra
Que diga a esses móveis.
Se os pudesse encarar...
Fazer seu nojo meu...

Carlos, dessa náusea
Como colher a flor?
Eu te telefono, Carlos,
Pedindo conselho.

(João Cabral de Melo Neto - Difícil ser funcinário)

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Eu sei que é junho...

Eu sei que é junho, o doido e gris seteiro
Com seu capuz escuro e bolorento
As setas que passaram com o vento
Zunindo pela noite, no terreiro
Eu sei que é junho!

Eu sei que é junho, esse relógio lento
Esse punhal de lesma, esse ponteiro,
Esse morcego em volta do candeeiro
E o chumbo de um velho pensamento

Eu sei que é junho, o barro dessas horas
O berro desses céus, ai, de anti-auroras
E essas cisternas, sombra, cinza, sul

E esses aquários fundos, cristalinos
Onde vão se afogar mudos meninos
Entre peixinhos de geléia azul
Eu sei que é junho!
(Junho - Alceu Valença)




Aqui permanece aquele clima de nevoeiro sobre o qual havia tantas vezes lhe falado. Cor de chumbo no ar, no céu, sob nossas cabeças. Tudo frio por fora e por dentro. O sol, agora, é um desconhecido distante.

A verdade é que junho sempre me pareceu um mês meio pesado. Uma espécie de dezembro no meio do ano...

Enquanto estou aqui, pensando em você, torço para que as nuvens passem o mais rapidamente possível, sem que te causem também qualquer dano.

De qualquer forma, gostaria de te lembrar que em tempos assim, quando tudo é puro cinza, é sempre bom agasalhar-se, deixar-se agasalhar. Por boas razões, recolhi o velho cobertor da gaveta. Apesar dos anos, é o que tem aquecido o meu corpo e acalentado alguns sonhos e muitos desalentos...

Quer experimentar?


(Cartas a si - VaneideDelmiro / 1996)

terça-feira, 27 de maio de 2008

Padrinho... Sete meses...

"Saudade, só..."


"(...) como era que um daquele podia se acabar?!"


"Deviam de tocar os sinos de todas as igrejas!"


"(...) era como levando eu, de milhares, uma carga de chumbo grosso ou chuvas-de-pedra."


"Muita coisa importante falta nome."


"Acho que nós dois éramos mesmo pertencentes."


"Quanto mais ando, querendo pessoas, parece que entro mais no sozinho do vago..." - foi o que pensei na ocasião. De pensar assim me desvalendo. Eu tinha culpa de tudo, na minha vida, e não sabia como não ter. Apertou em mim aquela tristeza, da pior de todas, que é a sem razão de motivo; que, quando notei que estava com dor-de-cabeça, e achei que por certo a tristeza vinha era daquilo, isso até me serviu de bom consolo. E eu nem sabia mais o montante que queria, nem aonde eu extenso ia."


(Fragmentos Grande Sertão: veredas - João Guimarães Rosa)

terça-feira, 13 de maio de 2008

Carta a João Pedro

"Mas eu olhava esse menino, com um prazer de companhia, como nunca por ninguém eu não tinha sentido. Achava que ele era muito diferente, gostei daquelas finas feições, a voz mesma, muito leve, muito aprazível. Porque ele falava sem mudança, nem intenção, sem sobêjo de esforço, fazia de conversar uma conversinha adulta e antiga. Fui recebendo em mim um desejo de que ele não fosse mais embora, mas ficasse, sobre as horas, e assim como estava sendo, sem parolagem miúda, sem brincadeira - só meu companheiro amigo desconhecido.
(...)
Ele, o menino, era dessemelhante, já disse, não dava minúcia de pessoa outra nenhuma."

(Grande Sertão: veredas - João Guimarães Rosa)




João,

Sei que você irá, ao longo da tua existência, encontrar vários sentidos pra essa passagem tão singular aqui, nesse planeta chamado Terra. De qualquer modo, e sem querer me antecipar, quero muito que saiba que um desses sentidos é a tua importância em minha vida: a alegria que sinto quando fecho os olhos e vejo a tua imagem ou, simplesmente, pronuncio o teu nome em silêncio.

Essa alegria, João, não é menor quando de teu chamamento – “tia!”: a onda beijando macio a areia, a geleira rendendo-se a um único raio de sol.

Eu sempre pergunto o porquê de te amar tanto e você sempre diz não saber. Além de tudo, João, você é modesto.

É bom que haja entre nós laços familiares, mas se não houvesse eu te amaria da mesma forma. Não amaria maior porque maior não haveria.

Você é um menino muito, muito especial. Inteligente, criativo, gentil e de grande sensibilidade. E tudo isso tá escrito no teu rosto, nos teus gestos doces e atenciosos.

Guardo na memória várias situações nas quais estivemos juntos. Gosto de lembrar você.

A experiência de te ver crescendo é maravilhosa e é redimensionada ao perceber que o nosso afeto segue nessa mesma direção.

Talvez não precise te falar. Você já deve ter percebido o quanto torço por sua felicidade. Que sua alma nunca seja fisgada por nenhuma gaiola ou mordaça, palavras que em nada combinam com você. Que você trilhe todos os caminhos de seu coração, sem esquecer que, além do prazer e da liberdade, nossa trajetória ganha sentido também na responsabilidade de nossos passos.

Estarei sempre contigo. Um abraço carinhoso, dessa que, em matéria de você, não sabe fazer outra coisa a não ser te amar.

Afetuosamente,

Tia Neide




João é o meu sobrinho do meio. Hoje é o dia de seu aniversário e há 10 anos a sua centelha brilha iluminando a minha vida. Tenho certeza de que a de muitas outras pessoas também.

sábado, 10 de maio de 2008

Menina branca como a neve - o caso Isabella

Quando você for-se embora
Moça branca como a neve
Me leve, me leve

Se acaso você não possa
Me carregar pela mão
Menina branca de neve
Me leve no coração

Se no coração não possa por acaso me levar
Moça de sonho e de neve
Me leve no seu lembrar

E se aí também não possa
Por tanta coisa que leve
Já viva em seu pensamento
Moça branca como a neve
Me leve no esquecimento
(Me leve - Ferreira Gullar)





Quem de nós, na infância, não ouviu atentamente a estória da Branca de Neve? Qual de nós não reconstruiu, na própria imaginação, a figura da madrasta má que, invejando a beleza de enteada, mostrou-se capaz de atitudes nada nobres para uma rainha.

Pois era com essa madrasta que nossos filhos, sobrinhos, pais e mesmo nossos avós, conviveram até a noite do dia 29 de março de 2008, quando Isabella, a menina branca como a neve, foi assassinada.

Depois do "caso Isabella", como ficou conhecido, a madrasta da Branca de Neve foi redimida de suas maldades e recobra urgentemente, em nossa fantasia, o posto do qual foi destronada, afinal suas perversidades tornaram-se "café pequeno" diante das atrocidades cometidas contra a pequena Isabella. Nosso imaginário se viu fragilizado demais tamanha overdose de crueldade real a que fomos expostos.

Deu saudade do caçador servil que fraquejou, na hora "h", dar cabo da jovem princesa, alertando-a a fugir em busca de um lugar seguro. Mais saudade ainda da maçã envenenada, que só de olhá-la nos fazia salivar. Sutilezas da perversão...

Isabella não experimentou um feitiço, passível de ser quebrado por um ato de amor, encarnado na estória infantil pelo beijo apaixonado do príncipe ou, quem dera, na vida real, pelo gesto amoroso do pai em socorrê-la. Não houve feitiço algum, mas uma espécie de mágica pelo avesso, impossível de ser desfeita: a morte.

Na estória, é a madrasta que, encurralada pelos anões, despenca no precipício após escorregar de uma montanha muito alta. É o ápice de nossa sede desesperada por justiça.

Por que a vida não imita a arte?

Isabella, sem chance de defesa, foi lançada num ato desumano, para não dizer inclassificável, do sexto andar de um edifício, ao que tudo indica pelas mãos do próprio pai - o espelho da madrasta?!

Naquela noite, os anões, em menor número e tão indefesos quanto, nada puderam fazer.

Enquanto seu corpo estendido na pequena área reservada ao jardim - seria sua floresta? - desfalecia, nascia em cada um de nós a perplexidade e o desejo íntimo e inútil de que esta, sim, não fosse uma estória real.
(VaneideDelmiro)




Queremos o seguinte no jornal
Quem mata menina se dá mal
Sendo gente bem ou marginal
Quem fere uma irmã tem seu final
(Mônica - Composição: Angela Rô Rô)

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Frutos da Insônia


Excesso de vigília, má higiene do sono, insônia ou, simplesmente, "eu não consigo dormir". As expressões são muitas e os efeitos dessa visita noturna tão inoportuna também: olheiras, irritação, indisposição no dia seguinte etc etc etc.

Mas não serei tão cruel com a insônia quanto ela tem sido comigo, porque foi numa dessas noites, em que as pálpebras se desconheciam mutuamente, que conheci, no Programa Altas Horas, o grupo paulista "O TEATRO MÁGICO". Foi paixão à primeira vista e olha que eu estava com os olhos bem abertos e os ouvidos atentos.

Então, nada mais justo que atribuir algum mérito a essa senhora insistentemnte insone. Às vezes, ela nos oferece bons frutos, reconheço um tanto mal humorada.




Sintaxe à Vontade

Sem horas e sem dores
Respeitável público pagão
a partir de sempre
toda cura pertence a nós
toda resposta e dúvida
todo sujeito é livre para conjugar o verbo que quiser
todo verbo é livre para ser direto e indireto
nenhum predicado será prejudicado
nem tampouco a vírgula, nem a crase nem a frase e ponto final!
afinal, a má gramática da vida nos põe entre pausas, entre vírgulas
e estar entre vírgulas pode ser aposto
e eu aposto o oposto que vou cativar a todos
sendo apenas um sujeito simples
um sujeito e sua oração
sua pressa e sua verdade,sua fé
que a regência da paz sirva a todos nós... cegos ou não
que enxerguemos o fato
de termos acessórios para nossa oração
separados ou adjuntos, nominais ou não
façamos parte do contexto da crônica
e de todas as capas de edição especial
sejamos também o anúncio da contra-capa
mas ser a capa e ser contra-capa
é a beleza da contradição
é negar a si mesmo
e negar a si mesmo
pode ser também encontrar-se com Deus
com o teu Deus
Sem horas e sem dores
Que nesse encontro que acontece agora
cada um possa se encontrar no outro
até porque...

tem horas que a gente se pergunta...
por que é que não se junta
tudo numa coisa só?

(O Teatro Mágico / Composição: Fernando Anitelli)

domingo, 13 de abril de 2008

Caso Isabella...

Hoje não dá
Hoje não dá
Não sei mais o que dizer
E nem o que pensar.

Hoje não dá
Hoje não dá
A maldade humana agora não tem nome
Hoje não dá.

Pegue duas medidas de estupidez
Junte trinta e quatro partes de mentira
Coloque tudo numa forma
Untada previamente
Com promessas não cumpridas

Adicione a seguir o ódio e a inveja
As dez colheres cheias de burrice
Mexa tudo e misture bem
E não se esqueça: antes de levar ao forno
Temperar com essência de espirito de porco,
Duas xícaras de indiferença
E um tablete e meio de preguiça.

Hoje não dá
Hoje não dá
Esta um dia tão bonito lá fora
E eu quero brincar

Mas hoje não dá
Hoje não dá
Vou consertar a minha asa quebrada
E descansar.

Gostaria de não saber destes crimes atrozes
É todo dia agora e o que vamos fazer?
Quero voar p'rá bem longe mas hoje não dá
Não sei o que pensar e nem o que dizer

Só nos sobrou do amor
A falta que ficou.

(Os Anjos - Renato Russo)

domingo, 6 de abril de 2008

Há coisas que amarelam (e pessoas também!)

Pintura: Salvador Dali



Hoje encontrei dentro de um livro uma velha carta amarelecida,
Rasguei-a sem procurar ao menos saber de quem seria...
Eu tenho um medo horrível
A essas marés montantes do passado,
Com suas quilhas afundadas, com
Meus sucessivos cadáveres amarrados aos mastros e gáveas...
Ai de mim,
Ai de ti, ó velho mar profundo
Eu venho sempre à tona de todos os naufrágios!
(Mário Quintana)




Um sorriso amarela quando ficamos sem jeito, mesmo se os dentes são branquíssimos. Na hora h se amarela e se perde uma oportunidade há muito esperada. A verdade e a transperência podem causam uma amarelidão sem fim. Diante da pessoa amada, então, amarela-se muito, quase uma hepatite sentimental.

Amarela-se por medo, por conveniência, por prudência, por falta de iniciativa, por insegurança e por tantas outras razões.

Algumas lembranças vão se esmaecendo com o correr dos anos. Quem sabe um jeito sutil de amarelarem... Os papéis também amarelam com a tinta do tempo. Guardados ou esquecidos, em gavetas de madeira ou da memória, amarelam cartas, poemas, declarações, confidências, pedaços de si... Seriam estas as “marés montantes do passado”, as quais temia horrivelmente Mário Quintana?

Hoje, assim como ele, encontrei uma carta amarelecida. Embora temendo, não a rasguei. Quer dizer é uma carta duplamente amarelecida, porque amarelei na hora de enviá-la e continuo amarelando até agora.

Relendo-a tive a sensação de que mesmo os acontecimentos e afetos perdendo o tom original, algo do seu vigor conservar-se apesar de tudo. Sem dúvida, Quintana, isso mete medo.



"Todo mundo amarela uma hora" - Fernando Anitelli

domingo, 30 de março de 2008

Estação Recolhimento

A passagem das estações determinando a mudança de hábitos... É assim - ou por isso mesmo - que muitas espécies de aves migram em bando, buscando a sobrevivência.
Preservar a vida é o horizonte desejado. Não titubeiam. Obedecem a um mapa interno que as impedem de deter-se ou retardar-se no caminho. Não perguntam se devem. Seguir é um imperativo, mas cumprido naturalmente, no vôo mais livre.
Quisera ter dos pássaros mais que o desejo de sê-los.
Dei asa à palavra e, juntas, elas recolheram-se.



Enquanto as águas de março fecham o verão
interrogo-me sobre o que se abrirá em abril.
(VaneideDelmiro)

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Era pra ser outra coisa

Como a vida tem seguido em câmera lenta, não devia mas parece natural vir aqui repetir certas falas. Entretanto, hoje, o que eu queria falar era de outra ordem, precisamente de uma certa desordem. Não aquela caótica, em que não se sabe onde tudo começa e termina e há confusão de sentimentos, mas de uma desordem que resulta da clareza de descontinuidade entre o que foi, o que é e o que será (se for)...
É esta mesma desordem que me faz sentir livre, mas não confortável, para não entender nem mesmo o fio condutor desta postagem, isto se houver algum.




"...E aquilo a que chamávamos nosso amor
era talvez eu estar de pé diante de você,
com uma flor amarela na mão,
você com duas velas verdes,
e o tempo soprando contra nossos rostos
uma lenta chuva de renúncias
e despedidas e tíquetes de metrô"

(Julio Cortázar)




Sabe aqueles momentos nos quais alguém deseja tanto falar e o outro necessita, com não menos intensidade, ouvir? Bem, essa pode ser a hora do amor. Ou de uma incomensurável solidão.
(VaneideDelmiro)

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Ponto. Final?

Às poucas coisas que ficaram
acrescentei o que não existia.
Apaguei todas as palavras da memória
e de quebra, as entrelinhas.
Enfim, coloquei um ponto
onde a vírgula persistia.

(VaneideDelmiro)

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Preciso...

Todos estes dias da luta mais vã, como disse o poeta Drummond, foi em Rilke que encontrei algum alento pras minhas manhãs mal rompidas e meus fracassados combates.




"O senhor olha para fora, e é isso sobretudo que não devia fazer agora. Ninguém pode aconselhá-lo e ajudá-lo, ninguém. Há apenas um meio. Volte-se para si mesmo. Investigue o motivo que o impele a escrever; comprove se ele estende as raízes até o ponto mais profundo do seu coração, confesse a si mesmo se o senhor morreria caso fosse proibido de escrever. Sobretudo isto: pergunte a si mesmo na hora mais silenciosa de sua madrugada: preciso escrever? Desenterre de si mesmo uma resposta profunda. E, se ela for afirmativa, se o senhor for capaz de enfrentar essa pergunta grave com um forte e simples "Preciso", então construa sua vida de acordo com tal necessidade; sua vida tem de se tornar, até na hora mais indiferente e irrelevante, um sinal e um testemunho desse impulso."
(Rainer Maria Rilke - Cartas a um jovem poeta)

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Larva da palavra

Acredito na capacidade de expressão da palavra. Acredito em sua força transforma(DOR)a. Acredito em seu potencial para tornar menos sombra certos afetos, estados do ser. Expulsar fantasmas, recriar mundos, traduzi-los. Dizer-se. Quiçá, refazer-se. Não duvido, acredito. Acredite, acredito! Mas quando a fonte não jorra há dias nem um vôo se anuncia, a crença esvazia-se na espera-ânsia e me faz desejar não a asa, mas a larva, a larva da palavra.




"A escritura é um abrigo" - Mário Benedetti

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Bloco do Eu Sozinho


O pior do carnaval é não conseguir se desprender dele, mesmo quando dele não se participou. Foi-se a quarta-feira, mas as cinzas ainda não foram atiradas ao mar. Também, pudera, toda esta solidão e silêncio, eu deveria ter desconfiado que o Bloco do Eu Sozinho não deixaria à avenida assim tão rapidamente, tampouco se desfaria de sua fantasia de "estou assim porque quis".
Abro alas à quaresma e que ela me traga alguma ressurreição.




Bloco do Eu Sozinho: Título do 2º CD dos Los Hermanos.

sábado, 2 de fevereiro de 2008

Pierrot





"O Pierrot apaixonado chora pelo amor da Colombina..."
(Pierrot - Los Hermanos)



"Nada é do tamanho
do que sinto agora em mim
nada do que sinto
foi sentido tanto assim
só a dor constrói
só o amor que dói
só mas com amor
meu mundo é maior

nada é do tamanho
do que já desfila em mim
filas de escolas
com milhões de tamborins
e eu sem ter lugar
pra tanto bem e tanto mal
(...)
desde que nasci
acho natural
tanta solidão
no esplendor do carnaval"
(Desfile - Ná Ozzetti e Luiz Tatit)


A postagem da composição "Desfile" é retroativa. O que a justifica hoje (23/02) é expressar todo o sentido de antes.

domingo, 27 de janeiro de 2008

Padrinho... Três meses...


"Nenhum dia é seguro sem notícias suas"
Sylvia Plath



Alheias à morte, as flores brotam. Pequeninos ramos nascem ali mesmo, fazendo do túmulo a sua nova morada. Exibem folhas de um verde-esperança e sorriem à passagem do vento. A minha oração, que nada mais era que um comunicado da saudade, ficou suspensa ante a vida que insiste em vingar.
Acho que me sabias ali. Por instantes ficamos mudos na mais plena comunhão. Nem o canto dos pássaros, os observadores passos dos traseuntes, a chama da vela, a passagem ao longe dos carros, o sussurro dos mortos. Nada, apenas a mais plena comunhão.
E eu que fui te ofertar flores num gesto simbólico de carinho, acabei por recebê-las. Sua generosidade, já desconfiava, não é desse mundo.
Saudade Padrinho, toda saudade.

sábado, 26 de janeiro de 2008

Para Mariana

Mariana, depois que nos falamos hoje, senti que as palavras queriam voar. Já era tarde, mas ponteiros não combinam com liberdade. A nossa conversa foi um céu imenso de possibilidades e o vento, favorável aos mais belos vôos. Mesmo assim, com tudo a favor, as asas arredias planaram sem sinal de pouso. Qualquer hora elas voltam. Enquanto isso não acontece, resgatei de minhas arrumações um texto, escrito há alguns anos, mas cujo pouso aqui ganha sentido pelo que conversamos.



Um jardim por mais silencioso sempre pede, a sua maneira, para ser visitado. Eu, na minha ignorância, devia tê-lo compreendido. Mas sua beleza me fez recuar e confundir, no mais profundo, o medo à prudência, a timidez à delicadeza.

Desaprendera, então, toda a ousadia, todo ímpeto de desejo. Esperando sua permissão, que de tanta ambigüidade ma fazia ir e recuar num movimento estático, eu, contente de tudo ser só isso, sofria.

Ainda hoje interrogo se não devia ter entrado, assim como quem no intento da surpresa - da boa surpresa - aparece para uma visita inesperadamente planejada, com terceiras intenções.

E assim, teria podado as árvores, extraído as ervas daninhas, regado as flores, aparado a grama e sentido o prazer compacto, retido na pétala já orvalhada de minha retina.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Desengasgo...

Agora eu vou cantar pros miseráveis
(...)
Pra quem não sabe amar
Fica esperando
Alguém que caiba no seu sonho
Como varizes que vão aumentando
Como insetos em volta da lâmpada
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Pra essa gente careta e covarde
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Lhes dê grandeza e um pouco de coragem

(Blues da piedade – Cazuza e Frejat)



Francamente não sei se é incoerência isso de sentir e não demonstrar. Sei lá, às vezes as pessoas querem se preservar, se proteger, têm seus motivos. Há de se considerar.

De qualquer modo, acho dificílimo entender que alguém diga gostar de outra pessoa e tenha atitudes tão incongruentes com a sua fala. Isso, claro, na melhor das hipóteses, porque tem quem gosta e não declara ou declara somente quando o outro já está murcho de tanto esperar, de tanto querer ouvir, depois que sua alma, coitada, está a ponto de compor a paisagem do cariri.

Reconsidero, é verdade: as pessoas sentem e se expressam de formas diferentes. Mas não acredito que se desconheça o que de terno pode haver num abraço acolhedor, no cuidado declarado sem ressalvas ou meias-palavras, nos que querem, a todo custo, confundir a franqueza do sentir com a fraqueza de sentir.

Eu sinto, sinto muito...

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

2008: primeiro pouso...

"Eu conheço todos os seus medos,
parece que são meus.
Deve ser como ter dois pés esquerdos
e falar com Deus
(...)
Eu esqueço todos os seus erros
finjo que não doeu.
Ponho um band-aid no meu dedo
e saio no apogeu

(Pra nos lembrar - Leila Pinheiro)



– Ah, claro! Feliz Ano Novo pra você também!

– Passei, sim, antes por aqui. É que fiz silêncio. Achei que talvez você estivesse descansando...

– Puxa, desculpe! Não queria parecer indelicada.

– Eu sei que você se ressente de tanto silêncio, mas eu não posso sanar isso. Eu venho sempre que posso, mas nem sempre tenho algo a dizer. Você me conhece. Há limites, é preciso respeitá-los. Pensa que também não sinto, que também não quero trazer um texto legal, uma imagem bacana, comentar uma idéia, te contar meus sonhos? Você não entende que asa não é só vôo, que às vezes é repouso? Não compreende que palavra também necessita calar?



(...)



– Aliás, acho que é uma boa hora pra isso acontecer. Eu venho aqui, querendo te encontrar e é assim que você me recebe? Por acaso perguntou como andei me sentindo, o que estava acontecendo?

– Olha, deixa pra lá, afinal não vou conseguir me explicar mesmo.

– Vou embora, sim. Que outra alternativa me resta?

- Falar, falar o quê?

- Novidades? Não, não tenho novidades, nenhum filhotinho de vôo pra te contar, ainda mais depois que minhas primeiras sementes de asas foram cortadas. Só queria dividir o meu nada, o que, de algum modo, acabei conseguindo.

– Passe bem!


Depois disso, fez-se um longuíssiiiiiimo silêncio que começou ao teclar no menu iniciar e, em seguida, desligar o computador.
Era noite de fantasmas.