quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Um número maior, talvez menor...

No provador de roupas, ao se dar conta de que a peça experimentada não se ajusta, seja por se tratar de um número maior ou menor, você rapidamente solicita ao vendedor algo que se adéqüe ao seu tamanho. Com a correção numérica, por vezes, tudo se resolve.

Noutras ocasiões, se faz necessário algum tipo de reparo e a loja de consertos realiza o milagre da adequação: com apertos daqui e cortes dali a peça até parece ter sido feita para você.

Mas e a alma? Onde ajustar uma alma que não se adequa à moda preexistente? Que não encontra modelos prêt-à-porter? Que está muitos números além e aquém de si mesma?

P.S.: Independente do tamanho, possíveis respostas serão bem acolhidas...

(VaneideDelmiro)



"Cadê a tampa da pasta de dentes? / Minhas chaves aonde eu deixei? / O espelho me olha impaciente / Eu ia me encontrar e me atrasei / O sol me aparece de repente / Sem eu perceber, amanheceu / Traz a conta, chama o gerente / Diz que este outro aqui sou eu"
(H. Vianna/ P. Luís/ C. Avim, M. Moura, S. Silva, C. A. / Sincero Breu)

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Sugestões,


Para espantar a dor
Pinte mandalas com lápis de cor.
Veja um filme bem levinho
Onde um príncipe pequenino
Larga tudo por amor,
À flor...

Se preferir,
Compre roupas,
Regue as plantas,
Quebre a louça

E esqueça bem da moça,
- Que não sabe
Mas precisa esquecer...
(VaneideDelmiro)


Há tempos que eu já desisti / Dos planos daquele assalto / De versos retos, corretos / E o resto de paixão, reguei / Vai servir pra nós / E o doce da loucura é teu, / é meu / Pra usar a sós...
(Nei Lisboa / Telhados de Paris)

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Solilóquio

É possível que se leve uma vida inteira pra se entender o que se passa? Sim, é perfeitamente possível. E profundamente triste!

(VaneideDelmiro)


Há mil maneiras de ser. Uma delas, e não a menos confortável, é deixar-se ser. Um dia, eu serei, e acabou-se...
(Drummond de Andrade em carta a Mário de Andrade, 30/12/1924)

Estaca Zero


Casas em construção e asfalto quente desenham o trajeto.

Adiante, como um prêmio, vê-se o mar de relance, com seu azul arrebatador. É quando um estranho gosto de vida lhe invade a alma, mas nada, infelizmente, é roubado.

Casas em construção e asfalto quente desenham o trajeto.

(VaneideDelmiro)

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

A quem interessar possa...


Nota Explicativa Desprovida de Sentido

É assim a minha natureza:
gangorra de aparições e sumiços.

Longe de mim, busco(-me),
perto,
esquivo(-me).

(VaneideDelmiro)




E se você me achar esquisita, respeite também. Até eu fui obrigada a me respeitar.
(Clarice Lispector)

Como possa amar a grandeza do mundo, se não posso amar o tamanho de minha natureza?
(Clarice Lispector)

domingo, 22 de novembro de 2009

Intertextualidade

Em 1989, numa sala de aula do Lyceu Paraibano, eu lia pela primeira vez Apelo, de Dalton Trevisan. Como tantos outros, o conto me fora apresentado por Lourdinha, na época minha professora de português e literatura. Hoje, uma amiga muitíssimo querida.
Nunca esqueci a profundidade desse conto. Ao longo de todos esses anos, entre leitura e releituras, é inevitável não me sentir tocada pela sensação de desamparo que o texto provoca. Sem dúvida, um dos mais belos que já li.
Mais recentemente, tenho me deliciado com a voz macia de Nara Leão. É como deitar a alma na rede e deixá-la livre para embalar-se no ritmo da mais pura suavidade.
Foi num desses momentos, ouvindo a interpretação Por Causa de Você, composição de Dolores Duran e Tom Jobim, que um apelo se fez em minha memória.
Essa, Freud nem precisa explicar.


(VaneideDelmiro)



APELO (Dalton Trevisan)

Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa de esquina. Não foi ausência por uma semana: o batom ainda no lenço, o prato na mesa por engano, a imagem de relance no espelho.
Com os dias, Senhora, o leite primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém os guardou debaixo da escada. Toda a casa era um corredor deserto, até o canário ficou mudo. Não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite eles se iam. Ficava só, sem o perdão de sua presença, última luz na varanda, a todas as aflições do dia.
Sentia falta da pequena briga pelo sal no tomate — meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? Às suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcham. Não tenho botão na camisa. Calço a meia furada. Que fim levou o saca-rolha? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor.


Por Causa de Você (D. Duran / T. Jobim)

Ah, você está vendo só / Do jeito que eu fiquei / E que tudo ficou / Uma tristeza tão grande / Nas coisas mais simples / Que você tocou / A nossa casa querida / Já estava acostumada / Guardando você / As flores na janela / Sorriam, cantavam / Por causa de você / Olhe meu bem nunca mais / Nos deixe por favor / Somos a vida e o sonho / Nos somos o amor / Entre meu bem por favor / Não deixe o mundo mau levá-la outra vez / Me abrace simplesmente / Não fale, não lembre / Não chore meu bem

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Entre o bem e o mal

Quis, nem bem o sol raiou,
fazer tudo diferente...

Crente, acreditou.

Mas mal a noite chegou,
o desejo de tão frágil passou.

(VaneideDelmiro)


No sertão as cidades esperam o dia em que o asfalto chegar...
(Sá e Guarabyra, Tabuleiro)

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Padrinho... Dois Anos...



Depois de ter chegado tarde demais para atender ao seu chamado, eu nunca mais soube dizer se a vida ou a morte é mais veloz que um segundo correndo...
(VaneideDelmiro)


Nunca pensei um dia chegar
E te ouvi dizer:
Não é por mal
Mas vou te fazer chorar
Hoje vou te fazer chorar
Não tenho muito tempo
Tenho medo de ser um só
Tenho medo de ser só um
Alguém pra se lembrar
Alguém pra se lembrar
Alguém pra se lembrar
Faz um tempo eu quis
Fazer uma canção
Pra você viver mais
Faz um tempo eu quis
Fazer uma canção
Pra você viver mais
Deixei que tudo desaparecesse
E perto do fim
Não pude mais encontrar
E o amor ainda estava lá
O amor ainda estava lá...
(Pato Fu, Canção pra Você Viver Mais)



Nota: Outro dia, facilitando um grupo terapêutico para portadores de transtornos mentais, ouvi a expressão: "mais veloz que um segundo correndo..." Impossível não reconhecer certa inventividade na loucura.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

A morte de todos os momentos


... porque jamais se volta a ser o que (se) era.
(VaneideDelmiro)



"Pode ser cruel a eternidade..."
(Marcelo Camelo, Janta)

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Repatriada
















Arte: Mariana Massarani


Se me perguntassem quantas vezes eu fiz aquele trajeto, não saberia responder sem utilizar palavras como “tantas”, “incontáveis”, “inúmeras”...

No entanto, naquela manhã aparentemente igual a outras, enquanto dirigia por ruas que de tão conhecidas já nem se faziam notar, era extraordinário ser surpreendida pela sensação do familiar: o movimento na casa de bolos, o burburinho dos traseuntes, a fachada da escola primária, o busto com dedo em riste, a dança das árvores ao som do vento, aquele cruzamento... Ah, aquele cruzamento, outrora detestável, dava-me então a impressão de nele poder permanecer por horas, talvez dias, sem que isso me causasse incômodo algum.

Sentia-me afortunada por não possuir nada de absolutamente novo, mas pela dádiva de experimentar o antigo, o pisado, a memória in loco, mais uma vez.

Era bom estar de volta, repatriada corpo e alma.

Lembrei, de quando em terras estrangeiras, senti inveja – não encontro outro nome – das pessoas em sua terra natal, com seus costumes, crenças, modus vivendi. Elas possuíam um código secreto, cuja senha de acesso era-me declaradamente negada.

De volta, ficou ainda mais claro: eu fora estrangeira, mas já não era mais. E em cada cena, paisagem, rosto ou palavra familiar não era eu quem ressuscitava o Brasil, mas o Brasil, o Brasil, sim, me ressuscitava.

(VaneideDelmiro)



"Pequenina como se eu fosse o saudoso poeta
E fosses a Paraíba
Terra! Terra!
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria"
(Caetano Veloso, Terra)

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Estranheza

"Tudo isso não faz inveja pra quem vem lá do sertão
bicho de qualquer qualidade, soltinho na amplidão
Jardim na frente da casa, cantando num galho um bem te vi
Eu vou é m'embora daqui, eu vou é m'embora daqui"
(Cátia de França, Panorama)




Arre, paisagens que não me retratam,
gastronomias que não me apetecem,
leitos fartos de cansaços vis.

Meus ouvidos reclamam
a voz e a língua materna.
E a alma,
o sentido primeiro do existir.

VaneideDelmiro (31/08/2009, em retorno ao Brasil)





"Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes"
(Vinícius de Moraes, Pátria Minha)

domingo, 6 de setembro de 2009

Itinerário

Perdi a conta dos túneis nas estradas
- um só deles valia por vários.

Estufei a memória como uma sacola de compras
- repleta de sabores, paisagens, impressões...
E constatei a escassez dos cinco sentidos.

Eu vi a poesia:
Magnífica! Bravíssima! Iluminada!
Mas temo não saber (d)escrevê-la.

No retorno, retina era boca sedenta
por tudo que havia de mais familiar.

Voltei!

(VaneideDelmiro)



"Minha saudade não se rebate
Vai no grito estrangulado do meu canto"
(Cátia de França , Coito das Araras)

segunda-feira, 20 de julho de 2009

À Margem...


Como sempre, ao final dava-se conta daquilo que havia de mais genuíno em suas experiências amorosas: a impossibilidade de experimentá-las em verdade concreta.

Era clara a intensidade do sentir, a veemência no dizer, mas essa pletora de afetos, sensações e palavras tocava-lhe sempre a alma, mas raramente a vida real, de quem estava sempre à margem.

Não, já não era o cansaço que lhe fazia desistir, mas a evidência de que o mais não existiria, porque estava além de si.

(VaneideDelmiro)


"Talvez tenha sido pecado apostar na alegria..."
(Queixa / Caetano Veloso)

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Apreciamento



Tenho dito, e sentido:
porque o que dizem ser plenitude, eu chamo de poesia.

(VaneideDelmiro)



"Mas isso não é
uma questão de opinião.
Mas isso é só
uma questão de opinião"
(Teto de Vidro - Pitty)



plenitude

ple.ni.tu.de
sf (lat plenitudine)
1 Estado ou qualidade do que é pleno, cheio ou completo.
2 Totalidade.

(Michaelis - Moderno Dicionário da Língua Portuguesa)

domingo, 5 de julho de 2009

Dos mistérios do tempo


Incógnita

Você rechaça ser passado,
eu rejeito não ser futuro.
Então, por que não nos presenteamos?


(VaneideDelmiro)

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Lugar Perfeito


Ali,
onde as palavras malditas não chegam...

(VaneideDelmiro)



sábado, 20 de junho de 2009

Recomendações para bem viver


Se pintar um azul incrível
em tua poesia toda cinza
não te assustes,
nem o apartes de ti
(não tão rapidamente).

Acolhe-o,
desejoso que és
da leveza do céu,
da profundidade do mar.

(VaneideDelmiro)



"... e escolhe ser feliz que fica mais fácil..."
(fragmento de conversa - msn)


"E é como se eu despertasse de um sonho
Que não me deixou viver
E a vida explodisse em meu peito
Com as cores que eu não sonhei "
(De volta ao começo / Gonzaguinha)

sábado, 6 de junho de 2009

Entre afazeres domésticos e prazeres poéticos

Remover o pó da rima embaçada, nas estantes da vida.

Esvaziar gavetas e encontrar o perdido poema. Alegrar-se.

Derramar o poema sobre o chão, espalhá-lo por toda a superfície dos cômodos, a fim de que o caminhar diário se torne mais leve.

Arrumar a cama prefaciando sonhos futuros.

Lavar os lençóis e ler, em seus fios gastos, a caligrafia irrefutável do tempo.

Em hipótese alguma, não importa o cansaço, deixar de recolher o lixo como quem tendo amontoado palavras fétidas, livra-se delas definitamente.


(VaneideDelmiro)

sábado, 30 de maio de 2009

Dos desejos (que se encontram...)

Como quem entrega um presente, um dia me confidenciou seu desejo de ser um livro...
Em seguida, indagou-me com a expectativa de uma possível reprovação:
Isso não te parece uma idéia maluca?
Concordei de pronto:
Parece sim, como a minha – ser a poesia impressa em cada folha tua.

E nos pusemos a imaginar, loucamente, a noite de autógrafos...


(VaneideDelmiro)



"E quem um dia irá dizer
Que existe razão

Nas coisas feitas pelo coração?
E quem irá dizer
Que não existe razão!"
(Renato Russo, em Eduardo e Mônica)

terça-feira, 26 de maio de 2009

Palavra-semente





(Arte: Van Gogh - O Semeador)


À Socorro Dantas, em seu aniversário (27/05)


Se conheces a arte de semear estrelas, eu não sei – embora desconfie.

No entanto, certifico o manejo primoroso com a palavra, seus avessos e reversos, o que não se diz e o que escapa, nas demandas de horas marcadas e remarcadas.

Grata por cada palavra-semente acolhida e semeada, nos tempos de fartas colheitas e de searas escassas.

(VaneideDelmiro)



"Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é sua fineza de atenção."
(João Guimarães Rosa, Grande Sertão: veredas)

sábado, 23 de maio de 2009

Os (in)cautos desejos da folha em branco


Queria o deslizar suave e macio da caneta descobrindo a textura de seu papel intocado.

Suas margens sonhavam expandir-se, sem resistência, à inscrição de cada palavra nova - impressa, escrita, talhada - dando-lhe a certeza, ainda que falsa, de um além-fronteira.

Esperava iluminar-se como lâmpadas em postes enfileirados, letra-após-letra.

Extasiava-lhe a idéia da tinta penetrar seus poros, atingi-la quiçá pelo avesso e marcar sua existência.

Que descobrissem seus contornos, suas imperfeições, suas possíveis dobras, o cheiro do novo e do velho, o mudo convite, a carta escondida, a poesia inconfessa, os entre ditos nas entrelinhas.

Seu fino arcabouço prestaria-se palco à estória mais linda, sem menosdesprezar a possível tragédia. De bom grado aceitaria até mesmo os rascunhos às pressas, os rabiscos livres de preocupações estéticas.

Que lhe arrebatassem das prateleiras, dos armários de aço, das gavetas encerradas, dos pacotes empilhados, da infame vida reprodutiva das fotocopiadoras, porque desejava uma outra condição, na condução da palavra.

(VaneideDelmiro)



segunda-feira, 18 de maio de 2009

Padecimentos









(Arte: Oswaldo Guayasamín - Las manos del silencio)



Novamente o silêncio invade a casa. Resoluto, não espera mais à porta. Familiar, não expressa timidez. Severo, abate todas as asas.

Fita-me com seus grandes olhos mudos, esperando respostas que não tenho pras perguntas que nem fez.

Deixa claro, ali parado, quase inerte, que não pretende partir em definitivo. Melhor perder, se há alguma, a esperança, afinal a vida em seus mistérios pode calar qualquer explicação.

Isso nitidamente o consola, mas a mim, a mim cuja sede de palavras é irrefreável, desola.

E na vã tentativa de não afugentar ainda mais o que já não existe, sigo sussurrando uma prece:

– Senhor, faz-me aceitar a assepsia da página, o vazio das linhas, a brancura da tela, os rabiscos abortados, a mudez das teclas, a paralisia das mãos, o repouso dessa língua, etérea. E que diante da perplexidade de tudo o que não há, eu consiga calar. Que a palavra sendo larva não irrompa seu casulo antes de poder experimentá-lo. E já que padeci de palavras, Senhor, ensina-me também a padecer de silêncios.

Amém!


(VaneideDelmiro)

segunda-feira, 11 de maio de 2009

A quinta-essência






(Arte: Pablo Picasso)


Advertiu-me:
- Do sonho,
te contarei apenas
a curta parte...


Se censura ou mero esquecimento
não se sabe...


Considerei, sim, a arte
de revelar-me a quinta-essência.


(VaneideDelmiro - 10/05/2009)


"O que fazes por sonhar é o mundo que virá,
pra ti... e para mim..."
(Renato Russo - 1º de Julho)

domingo, 3 de maio de 2009

Por dentro

Não era receita nem nada. Mas as palavras e os (des)afetos chegavam como ingredientes: uma pitada de maldade, porções generosas de mentira, colheres de egoísmo, xícaras de imprudência, medidas de arrependimento, lascas de curiosidade alheia.

Tudo cuidadosamente misturado e despejado em fôrma previamente aquecida e untada com covardia.

Talvez a fome fosse tanta que não se deu conta do prato que ia sendo preparado, do aroma desagradável que se acentuava minuto após minuto.

Como poderia ser diferente? Ao final, tinha a sua frente uma coisa feia, bem feia, medonha: intragável, disforme, indigesta, assim como passara a se sentir por dentro.


(VaneideDelmiro)



“(...) faz de conta que ela não estava chorando por dentro – pois mansamente, embora de olhos secos,
o coração estava molhado; ela saíra agora da voracidade de viver."
(Clarice Lispector)

"(...) garrava a ter nôjo de mim no meio dos outros."
"(...) me sentir pior de sorte que uma pulga entre dois dedos." .
"(...) grande vão, eu atravessava."
(João Guimarães Rosa - Grande Sertão: veredas)

sábado, 2 de maio de 2009

Ressaca



É que já se sentia cansada e, não bastasse, assaltava-lhe o temor.

Era início de maio, deveria estar feliz pela passagem dos dias. Podia algo surpreendentemente bom acontecer e soprar pras curvas do esquecimento tudo que foi equívoco, loucura, precipitação.

Quem sabe a possibilidade de acreditar de novo? Quem sabe o novo acordando uma antiga emoção? Talvez, um novo sentido pras horas, a melodia de inéditas canções, outros pedidos na mesma oração...

De resto, cabia esperar que o movimento violento e ensurdecedor das ondas cessasse de lhe arremessar de si contra si.


(VaneideDelmiro)



"Meu coração restava cheio de coisas movimentadas".
"Aquele dia tinha sido forte coisa. De longe e sossego eu careci, demais".
(João Guimarães RosA - Grande Sertão: veredas)

domingo, 26 de abril de 2009

Para não emudecer...

Eu bem desconfiara. Quando abril se abriu engoliu minhas palavras. Eu o desejei ameno, mas ele se fez cruel, golpeando-me dessa forma.

Enquanto as palavras partiam, eu tentei recuperá-las, gritei por elas, as chamei baixinho pelo nome, fiz bico, chantagem, apelei às boas lembranças. Todo tipo de capricho utilizei. Até a saliva secou de tanto que argumentei, relembrando a nossa história.

Ofereci, de bom grado, lápis, papel, borracha, tudo de bandeja, na mesa, sob a luz focada do abajour.

Nem pareciam me ouvir. Bateram em retirada. Fizeram um silêncio abissal. Sequer olharam pra trás. Pouco caso ou um caso fatal?

Por via das dúvidas, comecei logo a rezar. Eu disse:
- Senhor, não me deixa emudecer. A poesia é também meu pão de cada dia, um escudo contra o sofrer. Senhor, não me deixa emudecer porque tudo que morre em mim, ressuscita no dizer.
Amém.


(VaneideDelmiro)



"Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e encontrareis; batei, e abrir-se-vos-á" (Mateus 7:7)
"E, tudo o que pedirdes na oração, crendo, o recebereis" (Mateus 21:22)

domingo, 29 de março de 2009

Já?...

JÁ SENTIU UMA ESPERANÇA VIVA DENTRO DO SEU CORAÇÃO? Já viu acesa uma luz inexplicável dissipando a escuridão? Já vislumbrou o futuro sem medo, mas com um enorme desejo de conhecê-lo? Já viu cicatrizes se tornarem invisíveis e, com elas, todos os vestígios da dor? Já recriou sonhos sem lamentar os que não se realizaram? Já perdôou as culpas de sua consciência? Já libertou seus pássaros interiores, permitindo-lhes voar o mais alto e o mais distante? Já quis ser você? Já repeliu o que era tão e somente seu? Já cobiçou o que não lhe pertencia? Já pensou no amor se realizando? Já se sentiu capaz de amar e ser amado, ambos (se) amando? Já viu os nós desatando? Já experimentou a ternura de um toque? Já olhou pela janela com ânsia de prisioneiro e sentiu a liberdade ainda ao alcance? Já interpretou a vida com a lógica de um louco e tudo fez sentido? Já quis ser poeta e nada mais pareceu ter tanta importância? Já confiou como criança? Já conversou com Deus? Já quis tanto encontrá-Lo? Já se perdeu nessa busca e ficou desesperado? Já se curvou diante de Sua infinita misericórdia? Já O colocou contra a parede por não compreender seus propósitos? Já reconheceu a fragilidade de sua própria fé? Já se sentiu pequenino diante do insondável e teve medo de admiti-lo? Já rezou, em silêncio, com o olhar estendido para o céu e essa foi a sua oração mais verdadeira? Já se sentiu fraco e quis esconder a sua fraqueza? Já quis colocar as cartas na mesa? Já protagonizou um dilema? Já quis morrer? Já se arrependeu de querê-lo? Já viu referenciais caírem por terra? Já se sentiu movediço pisando em você mesmo? Já gritou seu nome por inteiro tentando se encontrar? Já fez coisas inúteis acreditando que valiam à pena? Já negou o que antes prometeu? Já deu o que não era seu? Já juntou os cacos espelhados pelo chão? Já voltou atrás quando o orgulho ordenava seguir adiante? Já se arriscou em abismos? Já morou na casa do perigo? Já varou madrugada-após-madrugada em busca de abrigo? Já ardeu em febre e isso te foi leve? Já sofreu de demoras? Já tratou das urgências? Já cumpriu os mandamentos? Já jurou aos quatros ventos? Já ajoelhou aos pés do sacramento? Já secou as chuvas que molharam teu colchão? Já lavou as suas mãos? Já esteve por um fio? Já experimentou um vazio sem razão, que não é apenas vazio? Já quis chorar quando sorriu? Já disse um “não” por um “sim”? Já foi metade querendo ser uno? Já se defendeu antes da acusação? Já tirou as máscaras? Já despiu sua alma? Já silenciou quando as palavras proliferavam? Já disse o que não podia? Já ouviu o que bem queria? Já tentou voltar atrás? Já disse um "nunca mais"? Já acreditou na escrita como forma de ser salvo e se sentiu consolado? Já quis viajar pra não sei onde e fazer não se sabe o quê? Já quis ficar por lá? Já quis voltar? Já se curvou diante da morte? Já acreditou na sorte? Já quis reverter o tempo? Já quis colorir o vento? Já foi sequestrado por um único raio de sol e desejou não ser resgatado? Já provou a força da natureza? Já fitou os olhos da beleza? Já se sentiu importante pra alguém? Já se sentiu um zé ninguém? Já encarou a solidão de frente? Já nadou contra correntes? Já se permitiu esquecer? Já fez do esquecimento um alento? Já lembrou e quis reviver? Já sentiu o gosto agridoce da saudade? Já ouviu uma voz apaziguadora? Já lutou contra um afeto? Já sorriu de seus receios? Já largou tudo no meio? Já chegou ao fim da linha? Já desligou em pleno clima? Já ficou à toa, ao léu, a esmo? Já contrariou desejos? Já renunciou a paz? Já acreditou, de verdade, que tudo passa? Já cuidou de si mesmo como quem o faz a um amigo querido? Já foi socorrido? Já perdeu a hora? Já jogou tudo fora? Já andou na contramão? Já encontrou alguma direção? Já desejou um março menos intenso e um abril mais ameno? Já se indagou sobre o cimento que sedimenta as relações? Já clamou por calma? Já perdeu a graça? Já se encorajou? Já desperdiçou o melhor? Já se sabotou? Já quis ver tudo mudado: a casa, a rua, o bairro que habitam em você? Já te interpelaram? Já se interrogou? Já?...
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(VaneideDelmiro)
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"(...) ergo a cabeça da minha vida anônima, para o conhecimento claro de como existo. E vejo que tudo quanto tenho feito, tudo quanto tenho pensando, tudo quanto tenho sido é uma espécie de engano e de loucura."
(Fernando Pessoa)
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"Mas a si mesmo, Sidarta, não se dava alegria. Para si, não era nenhuma fonte de prazer. (...) Visões acometia-no e também pensamentos irrequietos, brotados das águas do rio, a faiscarem nos astros da noite, a fundirem-se sob os raios do sol. Devaneios assomavam-lhe aos olhos. O desassossego do coração invadia-o, vindo da fumaça dos sacrifícios (...)"
(Hermann Hesse)
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"Como devem sentir-se em ordem e de acordo com todos! Isso deve ser bom... Mas o que se passa comigo e como isso vai acabar?"
(Thomas Mann)
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"Viver é muito perigoso."
(João Guimarães Rosa)

sábado, 28 de março de 2009

A contragosto

Tua presença me chega
em conta-gotas.

Pe-que-nas do-sa-gens
que ab-sor-vo
a contragosto,

enquanto arquiteto
um contra-ataque.

(VaneideDelmiro)

sábado, 21 de março de 2009

Acordo tácito







(Arte: Van Gogh)

Finalmente,
agora concordamos.

Amar?
Sim, nos amamos

atravessando o silêncio
- essa ponte que desvia desencontros.

(VaneideDelmiro)

domingo, 15 de março de 2009

É isso cuidar?


Ao te ver me dá passagem num imenso sinal verde enquanto se detém no farol vermelho que propositalmente faz questão de acionar, me pergunto: isso é cuidar ou uma das muitas formas de renunciar?


(VaneideDelmiro)

terça-feira, 10 de março de 2009

Abandono

Teu nome ficou tão secreto
quanto uma senha perdida
que a gente procura em vão,
sabendo não mais encontrá-la.

E todas aquelas avenidas,
também apaguei da memória:
o caminho ermo, a noite dura,
anúncios luminosos
de refeições grátis
e fáceis promessas de amor.

Bani a urgência de amar
- remédio é pro que cicatriza!
E no fracasso dos dias
pressinto sinais de partida.

(VaneideDelmiro)

quinta-feira, 5 de março de 2009

Foi melhor...

No espelho, a lembrança refletiu os toques pra eu mudar: a cor do cabelo, o tom mais vermelho, o jeito de andar...

Seguiu-se uma tamanha clareza. Não foi com meu corpo que fizeste amor, mas com minhas palavras.

Foi melhor. Sim?!




OFERENDA

Li pra você todas as minhas inconfissões.
E a ti segredei, sem receio,
o mais íntimo de mim,
o meu único tesouro:
a palavra.

Tu ouvias e ouvias e ouvias.
- Às vezes ria, noutras chorava.

E assim era claro
no silêncio, sem saber
tu dizias que me amava.

(VaneideDelmiro / 2006)




Palavra quando acesa
Não queima em vão
Deixa uma beleza posta em seu carvão
E se não lhe atinge como uma espada
Peço não me condene...
Pois as palavras foram pra ti...


(Palavra Acesa / Fernando Filizola)

terça-feira, 3 de março de 2009

Vale a pena ver de novo...

Só o que sei, April, é que quero sentir as coisas. Senti-las de verdade. Não é uma boa ambição?

Muita gente percebe o vazio, mas é preciso ter coragem para ver a falta de esperança...

Saber tudo o que você tem, saber o que você precisa e saber como sobreviver sem tudo isso. É isso que se chama controle de inventário...

(Do filme: Foi Apenas um Sonho)



AS RAÍZES SÃO O DESEJO

Se alguém nos diz que "foi apenas um sonho", isso pode representar um grande alivio ou um terrível pesadelo...

Abortar um sonho pode ser tão ou mais danoso do que não conseguir concretizá-lo a contento. Essa é uma das muitas impressões suscitadas em Foi Apenas Um Sonho, drama protagonizado por Leonardo Di Caprio e Kate Winslet, no papel de Frank e April, respectivamente. Ambos, o simpático casal Wheeler.

Jovens, bonitos, admirados, Frank e April levam uma vida pacata, confortável, enquadrada nas expectativas sociais, sem tribulações... Ele, funcionário de uma empresa, na qual seu pai também trabalhou; ela, uma irretocável dona de casa, dedicada ao marido e aos dois filhos, após ter abandonado a carreira de atriz (não muito convincente pra ela mesma).

Sem muito esforço, é possível imaginá-los envelhecendo juntos, na saúde e na doença. Cadeiras de balanço lado a lado, saboreando uma boa xícara de chá, curtindo os netos e a segurança apaziguadora de um cotidiano previsível. Até que a morte os separe...

Mas a mesma previsibilidade que lhes trazia segurança passa também a ser fonte de insatisfação, deslocando o desejo, engendrando um novo sonho que pode - por que não? - ser a retomada de um velho projeto engavetado. É o abandono do vazio, a busca por uma esperança perdida...

É April quem ousa inicialmente sonhar, conceber o sonho como a um filho. Ouvira antes os comentários entusiastas do marido sobre Paris – um lugar de gente diferente – e acredita poder romper a mesmice de suas vidas mudando de cidade, de papéis: ela trabalharia enquanto ele poderia dedicar-se ao estudo e a descoberta de quais seriam seus verdadeiros interesses.

Seria somente absurdo, não fosse tão tentador. E o sonho de um é abraçado pelos dois, ante a perplexidade de amigos, vizinhos, colegas de trabalho.

É bonito vê-los sonhar, imaginar o futuro, se atirar de peito aberto, respirar o novo antecipadamente. Chega a ser assustador o despreendimento, a ousadia, a confiança e a certeza que passam a exibir em suas feições, na forma de andar. Suas raízes se chamam desejo.

Envoltos no sonho, não contavam com as voltas que a vida dá: a oferta de nova e melhor remunerada função na empresa e a gravidez inesperada da esposa levam Frank a interrogar a decisão então tomada. Não sei se o ápice do filme, mas seguramente um de seus pontos altos, porque os confrotará com o próprio desejo e com o desejo de um pelo outro.

Em meio a toda racionalidade de Frank e a desolação mortificante de April, é da figura “insana” de John (Michael Shannon) – filho de um casal vizinho – que a lucidez se aclara em verdades insuportáveis, porém verdades.

Daí por diante assiste-se a tentativa desesperada de recolocar o trem nos trilhos, tardiamente...

É inquestionável a força simbólica do aborto provocado por April nos momentos finais do filme. A interrupção violenta da gestação é também a impossibilidade de permanecer viva sem acalentar um sonho e partilhá-lo com que se ama.

Saí do cinema repetindo mentalmente foi apenas um filme, foi apenas um filme, foi apenas um filme, mas eu sei que não é apenas um sonho...

(VaneideDelmiro)



Para / De fingir que não repara / Nas verdades que eu te falo / Dá um pouco de atenção / Parta / Pegue um avião, reparta / Sonhar só não tá com nada / É uma festa na prisão / Nosso tempo é bom / Temos de montão / Deixa eu te levar então / Pra onde eu sei que a gente vai brilhar...
(Mulher Sem Razão – Cazuza/Bebel Gilberto/Dé)

(...) E como fruta que amadurece / E necessita de alguém que coma / A sua polpa que por dentro cresce / Lhe dando corpo e aroma / Os sonhos também apodrecem / Se com o tempo ninguém os reclama...
(Mesmo Assim / Biquini Cavadão)

sábado, 28 de fevereiro de 2009

Por um vôo seguro

Melhor parar por aqui

E depois
tem todas as razões,
todos os senões,
uma infinidade de sermões.

Nem pense em abrir os botões:
- É melhor parar por aqui!

(VaneideDelmiro)




Coincidência ou não, o período pós-carnaval traz sempre um certo silêncio, interno, mesmo quando uma batucada de afetos insiste em permanecer na avenida, exibindo fantasias, desfilando confusões.

As cinzas se estendem quarta-feira afora e deixam na casa um odor de palavras queimadas, difícil de suportar. Essa fogueira parece não ter fim.

Eu, que tenho sido uma defensora ferrenha da palavra, tenho que admitir a facilidade com a qual somos por ela enganados... Ou nos deixamos enganar?

Seja como for, é uma desilusão amorosa e, como tal, dói. Dói muito. Talvez por isso a necessidade de recolher a asa e esperar...

Riscos podem ser bons, mas no momento anseio por um vôo seguro.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

O pequeno herói e a princesa mignon














(Arte: http://marianamassarani.blogspot.com/)



Enquanto ouvia assustada, João relatava com indignação a crueldade de um garoto na escola que, de tipo avantajado, se sente à vontade para agredir e atemorizar crianças menores.

Carol foi uma dessas crianças que teve os lábios fortemente apertados num ato vil.

Ao observar a cena, João conta ter partido em defesa da irmã. Tão logo se aproximou puxou o braço do grandalhão e empurrou seu corpo em direção ao chão, para depois se afastarem, ele e sua irmã. O pequeno herói e a princesa mignon...

Não pude conter o meu espanto e preocupação:

"João, por favor, tome cuidado. Fique atento! Esse garoto pode..."

E sem que eu precisasse acrescentar uma só palavra, ele me disse com a doçura habitual:

"Tia, não se preocupa não, tá? O garoto é grande, mas meu amor é muito maior."


(VaneideDelmiro)



João, não me surpreende que você seja capaz de imprimir beleza e grandiosidade a um episódio que poderia, mas felizmente não ficou marcado pela maldade e covardia.
É como sempre digo: - "João, titia te ama, João!"



Abriu minha visão
O jeito que o amor
Tocando o pé no chão
Alcança as estrelas
Tem poder
De mover as montanhas
Quando quer acontecer
Derruba as barreiras...


(A Força do Amor / C. Horsth e R. Bastos)

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

E eu lá sou mulher de cappuccino! (Das diferenças)








Arte: images.easyart.com



O tempo estava propício. Até mesmo o frio de julho pode ser convidativo para quem o julga, à primeira vista, inóspito.

Naquela manhã saí para trabalhar levando uma pequena lata de cappuccino, minha bebida quente preferida. Entre uma e outra atividade convidaria os colegas para partilhar este prazer. Assim pensei, assim o fiz.

A água já borbulhava na chaleira e um cheiro bom de café indicava, no ambiente, o momento da pausa.

Aos poucos, o pequeno espaço adaptado para refeições ia sendo habitado.

Não sendo comum, a lata de cappuccino ganhara, naturalmente, algum destaque entre o pacote de biscoito, o depósito de açúcar, o pote de margarina e a garrafa térmica.

Antes mesmo que alguém mencionasse a novidade, anunciei com alegria:

"Hoje temos cappuccino!"

E entre interjeições, "obas!" e "uhns!", alguém vociferou:

"E EU LÁ SOU MULHER DE CAPPUCCINO!" Justificando em seguida a veemência de sua declaração:

"Para mim nada substitui o café: quente, forte, saboroso, de aroma inigualável. Que cappuccino que nada!" Afundou seu indicador na garrafa térmica, deixou o líquido "quente, forte, saboroso, de aroma inigualável" escoar dentro da xícara para, em seguida, sorvê-lo cuidadosamente.

Enquanto isso, ali pertinho, outro preparava chá de capim cidreira lembrando: –"Desconheço um tão relaxante!"

Ao fundo, ouvia-se uma voz mansa indagar: – "Onde está o leite, já acabou?"

Lá vem a chaleira, essa maria-fumaça-sem-trilhos, preparar meu cappuccino. Que delícia!!!

(VaneideDelmiro)




"Eu não espero pelo dia
em que todos os homens concordem,
apenas sei de diversas harmonias
bonitas, possíveis, sem juízo final"


(Fora da Ordem / Caetano Veloso)

Cabelos Brancos (Da comparação)

Perdidos entre os fios pretos
eles surgem rarefeitos.
Depois,
dá-se a inversão.

Quem sabe o amor
nascendo insuspeito
nos preencha por inteiro
com a sua vastidão.

(VaneideDelmiro / 01.02.2009)



Mariana, seu texto - O amor de cabelos brancos - foi inspirador.
http://maiscenas.blogspot.com/

sábado, 31 de janeiro de 2009

VIVER não é simplesmente...

Tempo Rei!
Oh Tempo Rei!
Oh Tempo Rei!
Transformai
As velhas formas do viver
Ensinai-me
Oh Pai!
O que eu, ainda não sei
Mãe Senhora do Perpétuo
Socorrei!...


(Gilberto Gil / Tempo Rei)




Esquecida do ano novo e da celeridade de um janeiro quase ido, seus sentidos se voltavam, tão somente, para a brisa festiva daquela manhã, lhe saldando através da janela do ônibus.

A uma altura do caminho, o encontro céu-mar confundia-se num azul-cumplicidade. Momentos raros nos quais se deixava ir, sem indagar como, onde, por que...

Seguia em puro silêncio, numa harmonia gritante, quando um colega a cumprimentou, sentando-se ao seu lado.

Ali iniciaram uma conversa despretensiosa sobre a beleza do dia, o escaldante verão, o tempo decorrido desde a última vez que se encontraram – também no ônibus –, ambos a caminho do trabalho.

O destino final se aproximava, adiantou-se temendo perder a parada. Despediu-se do colega desejando reencontrá-lo para mais uma itinerante conversa matinal.

Nada fora do script. Tudo sob controle, supôs, até ser surpreendida por uma desconcertante e inesperada pergunta: – "E então, quais seus planos para 2009?"

Como pôde? Foi seu primeiro pensamento. Se já era difícil admitir intimamente a escassez de sonhos, a ausência de projetos, a incapacidade de idealizá-los, imagina fazê-lo publicamente, diante da curiosidade dos olhares de outros passageiros. Reabriu-se a Inquisição.

Tentando livrar-se do embaraço a que repentinamente se viu envolta, ensaiou uma resposta qualquer, a única possível na ocasião:

– "Bem", (quando se começa uma frase assim significa, no mínimo, que não há nada bem), "não fiz planos, não pensei a respeito, quis fazer diferente..." Que vexame! Que viagem!

E tão vacilante quanto a sua resposta foram os seus passos em direção a saída. A porta do ônibus se fechou. Atrás de si, todos os olhares, inclassificáveis. Adiante, um futuro não planejado, incerto talvez. Sob sua cabeça, um azul incrivelmente desbotado.

A pergunta repercutiu ao longo dos dias. Agora, era ela quem se perguntava por que não fora capaz de responder que seu projeto consistia simplesmente em VIVER. Parecia-lhe uma resposta razoável, original, inteligente, e em parte verdadeira. Mas por que não lhe ocorreu?

Ao longo dos dias compreendeu sua incapacidade, porque VIVER não é simplesmente, mas bem que poderia, desejava. E em seu desejo a verdade era inteira.

(VaneideDelmiro)




"Acho espantoso viver, acumular memórias, afetos..."
(Caio Fernando Abreu)


"Não se preocupe em entender. Viver ultrapassa todo entendimento"
(Clarice Lispector)

domingo, 25 de janeiro de 2009

Onde estão?














(Arte: Mariana Massarani)



Onde Estão?
(Composição: Samuel Rosa / Nando Reis)


Fecho os olhos
Peço para Deus
Que possa atender
Esses versos e prosa
Que eu deixei
E eu não sei
Se irão
Tocá-lo em servidão

Abro a porta
Olho para o céu
Será que já choveu?
No jardim essas rosas
Que eu plantei
E eu não sei
Se estão
Mortas ou em botão


E eu me perguntei:
Onde estão
Todas as crianças
Todas as pessoas
Que eu já chamei
Que eu procurei aqui
E que eu tanto amei?
Onde estão meus irmãos?
Onde estão?


Abro os braços
Tanta emoção
Quando eu irei te ver?

No jardim, essas rosas
Que eu plantei
Mas eu não sei
Se irão
Abrir esses botões

Fecho os olhos
Peço para Deus
Que tente entender
Esses versos e prosa
Que eu não sei
Se eu deixei
Em vão
Tocar a imensidão

E eu me perguntei:
Onde estão
Todas as crianças
Todas as pessoas
Que eu já chamei
Que eu procurei aqui
E que eu tanto amei?
Onde estão meus irmãos?
Onde estão?

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Amor em Minúscula

Eis o nome do primeiro livro lido em 2009. De antemão devo dizer que a leitura foi determinada antes pelo título do que por qualquer outra informação prévia. O autor? Francesc Miralles, um escritor espanhol que até então desconhecia.

Amor em Minúscula foi um título tão sugestivo que me fez abortar temporariamente a leitura já iniciada de Morte em Veneza (Thomas Mann).

Sinceramente, mesmo depois de alguns dias, concluída a leitura, não consigo identificar com clareza o que me fez gostar do livro e lê-lo em tão pouco tempo.

A realidade é que o livro permanece pulsando, me impelindo a reabri-lo, a reler e refletir sobre algumas de suas passagens. Já na epígrafe encontra-se:

“Desfrute as pequenas coisas porque talvez um dia você olhe pra trás e se dê conta de que eram as grandes coisas.” (Robert Brault)

Até aí, nada de excepcional. É bem provável que boa parte de nós já tenha se dado conta disso, quiçá de maneira estarrecedora. Assim, vou descobrindo – me permito –encontrar alguns indícios que traduzem a minha simpatia por Amor em Minúscula.

O livro aborda a vida de um professor universitário solitário (Samuel) que em sua rotina entediante é surpreendido por algo inusitado – a visita inesperada de um gato desconhecido em seu apartamento.

Mishima, como passa a ser chamado por seu novo dono, é o ponto de partida para toda uma série de acontecimentos na vida de Samuel, levando-o a um resgate: “retrocedi trinta anos, até uma tarde de sábado que acreditava esquecida.”

A partir daí, a louca e misteriosa engranagem da vida, até então emperrada, começa a mover-se. É simplesmente maravilhoso que a imobilidade de uma peça seja vencida, ainda que pela força do insuspeitável, ainda que provoque ruídos indesejáveis, reações adversas.

É maravilhoso que isso aconteça, ainda que num romance.

... O amor tem suas minúcias... O cotidiano, a vida, esses então, não ficam atrás.


(VaneideDelmiro)



Seguem trechos do livro:

“FALTAVA UM SUSPIRO para que o ano acabasse e começasse outro. Invenção humana para vender calendários. Afinal de contas, decidimos arbitrariamente quando começam os anos, os meses e até as horas.”

“Enquanto colocava sobre a solitária mesa de jantar uma garrafa pequena de champanhe e 12 uvas, eu pensava nas horas. Havia lido em um livro que as baterias da vida humana se esgotam ao cabo de 650 mil horas.”

“(...) A questão era: quantos milhares de horas eu já desperdiçará?
Faltando pouco para aquele 31 de dezembro, minha vida não havia sido exatamente uma aventura.”


"Já estou em um ano novo”, foi meu último pensamento, “mas nada de novo virá”. E adormeci ignorando o quanto me equivocava.”

“Não suspeitava que o ano-novo fosse me reservar uma surpresa pequena, mas de efeito devastador. Como o movimento das asas de uma borboleta que causa um cataclismo do outro lado do globo, aproximava-se um vendaval que derrubaria as falsas paredes entre as quais minha vida fora encenada até então. Não há metereologistas capazes de prever esse tipo de temporal.”


"Você passa a vida em um cárcere que construiu para si mesmo e um dia batem à porta. Alguém veio buscá-lo e você acha que nunca mais ficará sozinho. Mas o que acontece quando você abre a porta e percebe que não há ninguém atrás dela? E se já foi embora? Talvez para você a batida fosse um convite a um longo passeio, tão longo que poderia durar uma vida, enquanto que para a outra pessoa as batidas tivessem um objetivo mais simples: confirmar que a porta ainda soava."


"Toda luz tem sua sombra. As pessoas aparentemente mais simples ocultam um mundo no qual acontecem coisas impensáveis. Quando penetramos nele por acaso, somos invadidos por um sentimento de desconcerto e temor, como quem invade um jardim alheio.
De repente nos damos conta de que algo que sempre estivera ali nos passara despercebido. O passo seguinte é ampliar o território de dúvida aos campos contíguos. A partir daí, a região da sombra pode nos levar a lugares nunca imaginados. Afinal de contas, o reverso da moeda ocupa a mesma superfície que seu oposto.
Você pode descobrir que não sabia nada de alguém que vive ao seu lado, ou que até agora fechava os olhos para não vê-lo. E desejaria que esta primeira revelação – que rompeu a doce rotina – não tivesse chegado nunca.
Por isso, às vezes, é conveniente não querer saber tudo."



“– Faltam muitas palavras a inventar. Por que existe o termo “órfão”, aplicado a uma criança que perde sua mãe, e não existe termo para a mãe que perdeu seu filho? Será porque sofre menos?
– Você tem razão. Agora que estou pensando nisso, tenho um significado à procura de uma palavra: amor em minúscula.
– Amor em minúscula?
– Sim, talvez seja a única descoberta de que tenho orgulho – disse exaltado. – Uma pessoa faz um pequeno gesto bondoso e isso desata uma cadeia de acontecimentos que lhe devolvem um amor multiplicado. Ao final, embora você queira voltar ao ponto de partida, não é mais possível, porque o amor em minúscula apagou qualquer caminho de volta ao que existira antes.
– Isso que você diz é bonito, embora não consiga entender.
– Nem eu próprio entendo. Mas a prova disso é que estamos aqui”



Miralles, Francesc. Amor em Minúscula. Rio de Janeiro: Record, 2008.