sexta-feira, 27 de junho de 2008

Padrinho... Oito meses...

Há muito tempo, que não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias.

Eu mesmo envelheci: Olha, em relevo,
estes sinais em mim, não das carícias

(tão leves) que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a teu menino, que ao sol-posto
perde a sabedoria das crianças.

A falta que me fazes não é tanto
à hora de dormir, quando dizias
"Deus te abençõe", e a noite abria em sonho.

É quando, ao despertar, revejo a um canto
a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho.

(Carlos Drummond de Andrade / Carta)

terça-feira, 24 de junho de 2008

Insuspeitável (lacinho de cor)

Quando deu a hora,
como de costume,
eu cheguei sem cor.

Mas aquelas mãos
logo me trouxeram
um insuspeitável
lacinho de cor.

Um laço amarelo
com seu tom vibrante
veio e me enlaçou.

Posto em meu cabelo
de um jeito terno
o laço amarelo
me iluminou.

(VaneideDelmiro)
"(...) ELA SEM DÚVIDA ESTAVA A ALGUMA DISTÂNCIA DE ONDE DESEJAVA, DO PONTO DE VISTA VOCACIONAL, DOMÉSTICO E EMOCIONAL."

(David Bradshaw referindo-se a Virginia Woolf, na Introdução do livro A Casa de Carlyle e outros esboços, escrito em 1909).




"A CASA É ILUMINADA E ESPAÇOSA; MAS É UM LUGAR SILENCIOSO, QUE DEMANDA MUITA IMAGINAÇÃO PARA QUE SE POSSA VÊ-LO COM VIDA NOVAMENTE."

(Virginia Woolf)

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Crepita lá fora o São João de outrora



Chegou a hora da fogueira!
É noite de São João...
O céu fica todo iluminado
Fica o céu todo estrelado
Pintadinho de Balão...
Pensando no caboclo a noite inteira
Também fica uma fogueira
Dentro do meu coração.

Quando eu era pequenino
De pé no chão
Eu cortava papel fino
Pra fazer balão...
E o balão ia subindo
Para o azul da imensidão.

Hoje em dia o meu destino
Não vive em paz
O balão de papel fino
Já não sobe mais...
O balão da ilusão
Levou pedra
E foi ao chão.
(Lamartine Babo - Chegou a hora da fogueira)





Crepita lá fora
o São João de outrora.
Crepita...
Crepita...

Tinha a quermesse na praça,
na igreja, o novenário.

O ar era só fumaça
mas nem tosse ou pigarro,

e se o olho lacrimejava
era do brilho iluminado

Das fogueiras e dos fogos,
coloridas bandeirolas.

Entre prendas e adivinhações
descortinava-se o futuro:

casamento, rala-bucho,
bem-querer, malquerência.

Tudo tão combinado:
o teu chapéu de palha
com o meu vestido rodado,

Do pé-de-moleque à canjica,
Da paçoca ao milho assado.


A alegria-menina brincava por todos os lados:
na quadrilha, na palhoça,
no beijo que se pretendia roubado.


Crepita lá fora
o São João de outrora.
Crepita...
Crepita...


E se outrora pudesse
ser mesmo uma outra hora,
por que não agora?

(VaneideDelmiro)

sábado, 21 de junho de 2008

"Mas agora eu vivia em completo silêncio. (...) Eu não estava me encontrando com ninguém, não falava com ninguém, nem escrevia poemas"
(Orhan Pamuk - Neve)

sábado, 14 de junho de 2008

"Mas, diga-me, por favor, o que é que eu procuro?"

Não era uma visita desproposital, à toa, eu sei. Mas a minha esperança de encontrar edições antigas de livros de Antoine de Saint-Exupéry já andava meio capenga há algum tempo.

Depois que li Terra dos Homens, reeditado em edição especial pela Editora Nova Fronteira, em 2006, fiquei querendo ler outras obras do autor, impressionada como conseguiu, no referido livro, ser tão ou mais encantador quanto o foi nO Pequeno Príncipe.

Mesmo assim, com um fiapinho de esperança, fui ao Sebo Cultural da cidade (www.osebocultural.com.br) e vi aquele fio pequenino e frágil ganhando corpo na resposta positiva da atendente: “Há sim, senhora, temos três títulos. Vou providenciá-los!”

Pronto, em segundos, eu tinha um novelo inteirinho nas mãos e no coração todo o medo do mundo de que, ao voltar, descobríssemos que o sistema de dados nos enganara.

Confirmada a existência sublime, senti-me protagonizando a cena descrita por Clarice Lispector em Felicidade Clandestina – “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante”.

Valeu à pena esperar. Acabei adquirindo, na semana do meu aniversário, um exemplar que compilava duas obras do autor: Correio Sul e Vôo Noturno, editado por Abril Cultural e Victor Civita, há 34 anos atrás, no ano em que eu nasci. Coincidência? Encontro marcado?...

Quanto ao aspecto do livro, digo-lhes estar em bom estado de conservação. Mas isso informo só a título de curiosidade, porque o que importa verdadeiramente, nas raras oportunidades em que a vida permite, de forma tão sublime, ter o ser amante nos braços, é amá-lo.







"Depois, você me conhece, aquela pressa de partir outra vez, de buscar mais longe o que eu pressenti e não compreendia, pois eu era como um vedor que anda pelo mundo com a varinha trêmula na mão em busca de um tesouro.

Mas, diga-me, por favor, o que é que eu procuro? Por que, nesta cidade, onde estão meus amigos, meus desejos e minhas lembranças, eu sofro e me desespero apoiado à janela? Diga-me por que, pela primeira vez, não descubro a nascente e por que me sinto tão longe do tesouro? Qual é esta promessa obscura que me foi feita e que um deus desconhecido não cumpre?"

(Correio Sul - Antoine de Saint-Exupéry - 1974)

sexta-feira, 13 de junho de 2008

O sabor de nenhuma estação...



À Lourdinha, amiga de todas as estações do ano, e da vida...


Depois de declarada nossa fé em Antônio (♫que seria de mim, meu Deus, sem a fé em Antônio?♫), das divagações sobre a única sexta-feira 13 deste ano, das fases da lua, de mim que quero ser outras e da sopa quentinha forrando nossos estômagos... Depois de tudo isso, e do mais que não foi postado, mas ficou registrado, voltei pra casa, num friozinho típico de um quase-inverno, pensando em teus outonos, com o sabor de nenhuma outra estação...



O sabor de nenhuma estação

Como uma colheita
ela esperava no outono
o frutificar daquela estação.

O sabor de nenhuma estação
podia comparar-se ao outono.
Não depois de apalpada a sua casca
e degustada, em magusto, a sua polpa.

Sequer desconfiará
que o outono, em seus tons,
esconde a profundidade e a dureza
de um caroço.

(VaneideDelmiro)

terça-feira, 10 de junho de 2008

Exercício de auto-convecimento...

Hoje é meu dia
Quero alegria
Porque a tristeza
Mandei embora
Já era hora
Dela partir
E eu ficar aqui
Feliz agora

Eu sei que é triste
Ninguém resiste
Guardar no peito
Mágoa e saudade
Mas na verdade
Como eu sofri
No fim eu vi
Quanta maldade

Por isso resta
A grande festa
Sem mais tristeza
Que eu faço agora
Chegou a hora
Hoje é meu dia
Quero a alegria
Rompeu a aurora


Rompeu a aurora...
Hoje é meu dia...
Quero alegria...

(Não consegui encontrar o título da bela composição interpretada pela saudosa Marinês, a rainha do forró, e Margareth Menezes).

Aniversário...



No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

(...)

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

(Aniversário - Álvaro de Campos)

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Como colher a flor?




O poema a seguir, um dos meus prediletos, foi escrito em 1943 por João Cabral de Melo Neto. O Carlos a quem faz referência é também o grande poeta Carlos Drummond de Andrade.

Postá-lo aqui talvez indique náusea em demasia...



Difícil ser funcionário
Nesta segunda-feira.
Eu te telefono, Carlos
Pedindo conselho.

Não é lá fora o dia
Que me deixa assim,
Cinemas, avenidas,
E outros não-fazeres.

É a dor das coisas,
O luto desta mesa;
É o regimento proibindo
Assovios, versos, flores.

Eu nunca suspeitara
Tanta roupa preta;
Tão pouco essas palavras —
Funcionárias, sem amor.

Carlos, há uma máquina
Que nunca escreve cartas;
Há uma garrafa de tinta
Que nunca bebeu álcool.

E os arquivos, Carlos,
As caixas de papéis:
Túmulos para todos
Os tamanhos de meu corpo.

Não me sinto correto
De gravata de cor,
E na cabeça uma moça
Em forma de lembrança

Não encontro a palavra
Que diga a esses móveis.
Se os pudesse encarar...
Fazer seu nojo meu...

Carlos, dessa náusea
Como colher a flor?
Eu te telefono, Carlos,
Pedindo conselho.

(João Cabral de Melo Neto - Difícil ser funcinário)

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Eu sei que é junho...

Eu sei que é junho, o doido e gris seteiro
Com seu capuz escuro e bolorento
As setas que passaram com o vento
Zunindo pela noite, no terreiro
Eu sei que é junho!

Eu sei que é junho, esse relógio lento
Esse punhal de lesma, esse ponteiro,
Esse morcego em volta do candeeiro
E o chumbo de um velho pensamento

Eu sei que é junho, o barro dessas horas
O berro desses céus, ai, de anti-auroras
E essas cisternas, sombra, cinza, sul

E esses aquários fundos, cristalinos
Onde vão se afogar mudos meninos
Entre peixinhos de geléia azul
Eu sei que é junho!
(Junho - Alceu Valença)




Aqui permanece aquele clima de nevoeiro sobre o qual havia tantas vezes lhe falado. Cor de chumbo no ar, no céu, sob nossas cabeças. Tudo frio por fora e por dentro. O sol, agora, é um desconhecido distante.

A verdade é que junho sempre me pareceu um mês meio pesado. Uma espécie de dezembro no meio do ano...

Enquanto estou aqui, pensando em você, torço para que as nuvens passem o mais rapidamente possível, sem que te causem também qualquer dano.

De qualquer forma, gostaria de te lembrar que em tempos assim, quando tudo é puro cinza, é sempre bom agasalhar-se, deixar-se agasalhar. Por boas razões, recolhi o velho cobertor da gaveta. Apesar dos anos, é o que tem aquecido o meu corpo e acalentado alguns sonhos e muitos desalentos...

Quer experimentar?


(Cartas a si - VaneideDelmiro / 1996)