segunda-feira, 29 de outubro de 2007

A urgência continua...

Mais uma vez o inesperado nos assalta; nos assalta e nos rouba o bem mais precioso: a vida. A vida de Padrinho e também a de cada um de nós que com ele conviveu. A bem da verdade (da minha verdade - único lugar de onde ainda posso falar), a morte sempre me pareceu uma espécie de mágica que não deu certo, porque toda a mágica que se preze deve ser capaz de reverter o fenômeno, a transformação, o estado... Mas na morte - essa mágica pelo avesso - só há uma passagem, e definitiva, pelo menos no plano terrestre.

P.S. Hoje o tempo para saudades foi diminuto, espremido pela burocracia e providências mil. A morte burocrática é enfadonha e cruel e, como se não bastasse, os papéis não se revelam em suas gavetas agora taciturnas.

Morre-se e, no entanto, a urgência continua.

sábado, 27 de outubro de 2007

BLUES FÚNEBRE

Que parem os relógios, cale o telefone,
jogue-se ao cão um osso e que não ladre mais,
que emudeça o piano e que o tambor sancione
a vinda do caixão com seu cortejo atrás.

Que os aviões, gemendo acima em alvoroço,
escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu.
Que as pombas guardem luto — um laço no pescoço —
e os guardas usem finas luvas cor-de-breu.

Era meu norte, sul, meu leste, oeste, enquanto
viveu, meus dias úteis, meu fim-de-semana,
meu meio-dia, meia-noite, fala e canto;
quem julgue o amor eterno, como eu fiz, se engana.

É hora de apagar estrelas — são molestas —
guardar a lua, desmontar o sol brilhante,
de despejar o mar, jogar fora as florestas,
pois nada mais há de dar certo doravante.

(W.H. Auden)

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Please send me a letter...

Para M.D.

Em mim nenhuma dúvida repousa sobre a sua importância em minha vida. Talvez não seja exagero compará-lo a Théo ou ao "mano Caetano", este último disparado de sua mais absoluta preferência. Mas hoje, após colecionar mais um desencontro amoroso e experimentar estilhaços febris de um a(feto), diria que a loucura de Van Gogh revelaria mais de quem sou do que toda a poesia de Maria Bethânia. Mas, por favor, não deixe de notar a beleza que emana em ambos, às vezes de uma expressão violenta, noutras da mais pura suavidade.
Curioso que a gente partilhe tantas coisas em comum e, ao mesmo tempo, tanto silêncio. Acredito mesmo que você não suportaria saber ou presenciar as minhas fraquezas, e talvez querer me ver e ter forte faça-te tão duro comigo, tantas vezes.
Ah, são nossos jeitos estúpidos de amar.


"Maria Bethânia, please send me a letter
I wish to know things are getting better"
(Caetano Veloso)

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

O GATO MALHADO E A ANDORINHA SINHÁ...


Redescubro em "O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá: uma história de amor" (Jorge Amado) que o prazer da releitura pode ser tão ou maior que o da prórpia leitura. A visualização da capa do livro, na prateleira da livraria, disparou a lembrança da primeira leitura, há 17 anos, quando fui apresentada, sem o saber, aquela que hoje considero a prosa mais poética que já li (Obrigada, Lourdinha!). É uma história maravilhosa, com descrições preciosas e delicadas sobre o cenário, personagens e, sobretudo, sentimentos. Sem falar das iluminuras e ilustrações do livro (Caribé), de uma beleza pueril. É tentador o desejo de escrever / comentar sobre a história, mas não foi atendê-lo por um motivo básico: não quero correr o risco de reduzir o encanto da história e, com isso, comprometer, ainda que minimamente, o interesse de algum curioso leitor ou leitora. É claro que este risco é mesmo muitíssimo reduzido, já que não tenho conhecimento de possíveis visitas por estas paragens virtuais. Acho mesmo que se trata de uma paisagem um tanto inóspita, pois nem gato ou andorinha, sequer borboletas passam ou pousam aqui. Talvez eu não esteja cuidando bem deste jardim, mas isso já é outro departamento: departamento das prováveis ausências e improváveis presenças.
O que eu apenas queria destacar neste momento, acerca do texto de Jorge Amado, é que o autor, simples e sabiamente, adotou como subtítulo "uma história de amor", talvez por acreditar que o mais importante estava aí e não no impossível que se revela ao longo das estações.


"Era uma vez antigamente, mas muito antigamente, nas profundas do passado quando os bichos falavam, os cachorros eram amarrados com lingüiça, alfaiates casavam com princesas e as crianças chegavam no bico das cegonhas. Hoje os meninos e meninas já nascem sabendo tudo, aprendem no ventre materno, onde se fazem psicoanalisar para escolher cada qual o complexo preferido, a angústia, a solidão e a violência. Aconteceu naquele então uma história de amor." (Jorge Amado)

terça-feira, 2 de outubro de 2007

PRIMO BASÍLIO

Em meio a inércia e a febre mal anunciada destes dias e como não pudesse dispensar a minha própria companhia, por pura falta de opção, fui comigo ao cinema ver Primo Basílio. Sou suspeita quando se trata de filme nacional, mesmo não sendo uma nacionalista de carteirinha como o personagem Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. Eu não queria falar sobre o filme propriamente, mas da fragilidade das relações humanas, do passado se enraizando no presente, trazendo-lhe beleza e uma quase falsa promessa de resgate. Eu queria falar da culpa, cujo estrago, no filme, se revelou maior que a própria infidelidade. E não será assim também da vida real e para além das relações conjugais? Fiquei pensando no nocivo que é não nos perdoarmos por erros, omissões, gritantes silêncios. Na culpa que carregamos por tudo que ficou suspenso, pelo que se extrapolou, pelo que nem sequer se ousou sonhar. A culpa-ímpar-inconfessa-que-não-se-dissolve-nunca, nem mesmo quando todos te perdoam, porque é uma infame culpa íntima e vai matando uma verdade em você, qualquer que seja, mas é a sua e se precisa, sim, ser complacente consigo própria. É preciso, sim, colocar os "monstros no colo" (bela expressão utilizada por Marcia Tiburi, escritora e filósofa, no programa Sempre Um Papo). Não, nada disso é preciso. Tudo isso é urgente. É pra agora, é pra ontem, é pra décadas atrás. Oh, indócil monstro dá culpa, por que és tão aterrador, tão mortificante, tão gigantesco? Aceita o calor de uma alma trêmula, mas quente, sedenda por perdão.