quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Ces't la vie (I)


"O Brasil é uma
República Federativa
cheia de árvores
e gente dizendo adeus."

(Oswald de Andrade)



Indelével

Dentro do envelope a notícia esperada, mas não naquele momento, tão-já.

Foi esse sentimento de surpresa que os impediu de sentir qualquer outro que lhes fossem claro: alegria, tristeza, saudade antecipada...

E naquela primavera calorosa seus pensamentos também ficaram como que congelados, talvez um presságio do frio europeu que estava por vir.

Não. Definitivamente eles não seriam meninos sem pátria, porque não se fica nem se é indiferente ao Brasil, porque o Brasil é indelével, como amor de mãe - e de Tia também.

(VaneideDelmiro)



Meninos sem pátria: alusão ao livro de Luiz Puntel (Coleção Vagalume), lido em 1989.

sábado, 18 de outubro de 2008

Recusa da Palavra

"O que eu vi, sempre, é que toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo."
(Guimarães Rosa / Grande Sertão: veredas)



Será possível ficarmos imunes a casos como o da menina Isabella e, mais recentemente, o da adolescente Eloá?

Que estranhos sentimentos brotam tal qual erva daninha quando nos deparamos com a fragilidade humana?

Não quero poetizar a violência porque diante dela não há poesia possível. E se for para enfear o verso que lhe seja dada uma rima pobre, o que seria infinitamente mais belo que qualquer gesto contra a vida.

Mas o que fere a vida? Arremessar uma criança covardemente do sexto andar? Disparar uma arma contra quem se diz amar? Atos ferinos, feridas incicatrizáveis. Barbáries estarrecedoras ferem a vida. Ações vis, de notória crueldade também. Geram consenso, desejo coletivo de vingança, traduzido num perigoso “fazer justiça com as próprias mãos”.

Mas a vida, de tão frágil, a vida não precisa tanto, se fere com muito menos. Sutilezas do falar e do calar atingem a alma humana, podendo mesmo mortificá-la.

Em meio ao bombardeio midiático da última semana sobre o “seqüestro de Santo André” a fala do jovem Lindemberg Alves, “o seqüestrador”, em entrevista concedida a uma emissora de TV, me chamou atenção. Segundo ele o seu ato teria decorrido do fato de sua ex-namorada negar-se a conversar após o término do relacionamento. Um de seus amigos, num flash televisivo, atribuiu o seqüestro ao que denominou “recusa da palavra”.

Não convém aqui especular acerca da legitimidade das razões que impeliam Linderberg a falar e Eloá a não querer ouvi-lo. Tampouco cair no movediço terreno do “se”: se ele tivesse falado, se ela tivesse escutado, se... etc. etc. etc. O se, como bem indica sua consoante, é sempre sinuoso.

Convém, sim, pensar sobre essas duas dimensões – o falar e o ouvir – cuja força mesmo para nós, falantes e ouvintes, ainda nos é desconhecida, pouco desvendada.

Às vezes, dizem, fala-se por falar... Mas o falar pede o seu complemento, ainda que seja uma escuta íntima, de si para si.

Penso que o sentido do falar e do ouvir se esvai quando se dá por imposição. Impor silêncio a quem necessita falar é, num certo sentido, um ato de violência. Impor a fala a quem não deseja ouvi-la também. Eximir-se da palavra quando ela abre portas a esclarecimentos, antes mesmo de ser violento, é um ato covarde. Guardá-la na manga como um trunfo para, no momento oportuno, endereçá-la com furor pacífico (“palavras duras em voz de veludo”*) é reconhecidamente de uma requintada crueldade. Ouvir alguém que apresenta uma perspectiva diferente da sua pode ferir como bala a certeza e a arrogância de muitos.

Decerto que a palavra não é infalível, por vezes ela própria é fonte de desentendimentos. Curiosamente no caso do "seqüestro de Santo André", a despeito de todo arsenal policial, a palavra dotada de seu estranho poder alquímico era a principal arma dos negociadores, no entanto algo falhou e "o tiro", para usar expressão corrente, "saiu pela culatra".

Meu repúdio ao silêncio que não engendra a paz e a palavra que não constrói laço.

E que a nossa vontade de viver e deixar viver não seja também seqüestrada, porque não há preço para tamanho resgate.

(VaneideDelmiro)



“A minha alma tá armada e apontada para cara do sossego / pois paz sem voz / paz sem voz / não é paz, é medo / às vezes eu falo com a vida / às vezes é ela quem diz / qual a paz que eu não quero conservar / pra tentar ser feliz...
(...) É pela paz que eu não quero seguir admitindo”

(A Minha Alma / O Rappa)



* Verso da composição Cuide Bem Do Seu Amor (Paralamas do Sucesso)