segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Balanço...

"Pensar em tudo que se passou,
Que se pôde sonhar e não realizou
A vida tentando escapar,
Mas não por agora

Ao mesmo tempo tanta coisa se amou,
Se refez, se perdeu, se conquistou,
(...)

E que me lembrasse a cada instante
Que valeu a pena cada lance,
E que valerá, tenha certeza, pra toda a vida"


(Vou te levar - Lobão / Bernardo Vilhena)



Os apelos de dezembro são muitos e irresistíveis. Como fugir deles? De algum modo, dia-após-dia, ficamos balançados com as investidas nada sutis dessa época do ano.

As tentações são muitas e perigosas. Algumas, inclusive, a longo prazo, trazendo a idéia de que agora, passadas todas as páginas do calendário, se pode, enfim, concretizar o que se pensou. Pacotes, embrulhos, fitas para todos os presentes, cartões para todas as dívidas, perdões para todas as mágoas e mal-entendidos.

Mas as tentações são também internas, afinal dezembro não é só luzes, cores, brilho. Há um convite implícito que todo dezembro insiste em nos remeter. Aceitá-lo pode significar, exatamente, o oposto da iluminação própria a essa época do ano.

Falo aqui do famoso “balanço” a que as pessoas se propõem em dezembro mais do que em qualquer outra época do ano. Nem mesmo em ocasiões como aniversário, o balanço chega a ser tão impositivo como é em dezembro, uma espécie de febre coletiva, idéia fixa, desejo de grávida que não se dá muita atenção, mas só se aquieta quando satisfeito.

Então é isso, eu tentei ignorá-lo, com medo do saldo obtido. Entretive-me em lojas (imagine o que é entrar numa loja nessa época do ano!), aprendi novas receitas, dormi até não poder, mas o balanço já vinha me cercando, me obrigando a pensar, a fazê-lo, a subir em sua gangorra de perdas e ganhos, altos e baixos. Agora entendo a dificuldade que tive com a faxina da casa que nessa época do ano, não à toa, as pessoas a fazem de maneira mais caprichada.

É como se a faxina fosse para a casa o que o “balanço” é para as pessoas: o momento de se retirar a poeira para que os objetos-sentimentos possam ser vistos-sentidos em suas reais dimensões, avaliar o que deve permanecer e o que deve ser jogado fora, reencontrar suas referências, sentir saudade pelo que se perdeu, mudar as coisas de lugar pra tentar dá mais funcionalidade a passagem na rotina da casa, da vida...

É óbvio que tive medo, tem um frio delineando até agora a minha espinha. Basta dizer que 2007 foi o ano em que “eu vi a cara da morte e ela estava viva”. Um acontecimento desse porte tem o poder de se sobrepor a qualquer outra coisa, boa ou má, porque é irreparável. Não há como ser desfeito. Isso é perturbador, o que talvez explique atitudes tão miseravelmente humanas, desprovidas de respeito e amor ao próximo, mesmo numa situação de dor extrema.

Como não encarar que 2007 deixa marcas e uma enorme ferida aberta supurando saudade, vazio, medo, ausência, solidão? Em 2008, a centelha de esperança nada mais é que o desejo ardente por cicatrizes.

domingo, 23 de dezembro de 2007

Ceia de Natal

SERÁ QUE VOU REZAR? (Rubem Alves - Folha de São Paulo, 27/11/2007)

"Será que vou rezar? É. Cada um celebra o que escolhe. Acho que farei uma sopa de fubá que tomarei com pimenta e torradas.

SOU UM ADMIRADOR de Gandhi. Cheguei mesmo a escrever um livro sobre ele. Estou planejando convocar os amigos para uma homenagem póstuma a esse grande líder pacifista e vegetariano. Pensei que uma boa maneira de homenageá-lo seria um evento numa churrascaria, todo mundo gosta de churrasco, um delicado rodízio com carnes variadas, picanhas, filés, costelas, cupins, fraldinhas, lingüiças, salsichas, paios, galetos e muito chope. O grande líder merece ser lembrado e festejado com muita comilança e barriga cheia!

Eu não fiquei doido. O que fiz foi usar de um artifício lógico chamado "reductio ad absurdum" que consiste no seguinte: para provar a verdade de uma proposição, eu mostro os absurdos que se seguiriam se o seu contrário, e não ela, fosse verdadeiro.

Eu demonstrei o absurdo de se celebrar um líder vegetariano de hábitos frugais com um churrasco.

Uma homenagem tem de estar em harmonia com a pessoa homenageada para torná-la presente entre aqueles que a celebram. Uma refeição, sim. Mas pouca comida. Comer pouco é uma forma de demonstrar nosso respeito pela natureza. Alface, cenoura, azeitonas, pães e água.

Escrevo com antecedência, hoje, 27 de novembro, um mês antes, para que vocês celebrem direito. A celebração há de trazer de novo à memória o evento celebrado. É uma cena: numa estrebaria uma criancinha acaba de nascer. Sua mãe a colocou numa manjedoura, cocho onde se põe comida para os animais. As vacas mastigam sem parar, ruminando. Ouve-se um galo que canta e os violinos dos grilos, música suave... No meio dos animais tudo é tranqüilo. Os campos estão cobertos de vaga-lumes que piscam chamados de amor. E no céu brilha uma estrela diferente. Que estará ela anunciando com suas cores? O nascimento de um Deus?

É. O nascimento de um Deus. Deus é uma criança. O nascimento do Deus criança só pode ser celebrado com coisas mansas. Mansas e pobres. Os pobres, no seu despojamento, devem poder celebrar. Não é preciso muito. Um poema que se lê. Alberto Caeiro escreveu um poema que faria José e Maria, os pais do menininho, rir de felicidade: "Num meio-dia de fim de primavera, tive um sonho como uma fotografia: "Vi Jesus Cristo descer a terra. Veio pela encosta do monte tornado outra vez menino. Tinha fugido do céu...'" Longo, merece ser lido inteiro, bem devagar...

Uma canção que se canta. Das antigas. Tem de ser das antigas. Para convocar a saudade. É a saudade que traz para dentro da sala a cena que aconteceu longe. Sem saudade o milagre não acontece.

Algo para se comer. O que é que José e Maria teriam comido naquela noite? Um pedaço de queijo, nozes, vinho, pão velho, uma caneca de leite tirado na hora. E deram graças a Deus. E é preciso que se fale em voz baixa. Para não acordar a criança. Naquela mesma noite, havia uma outra celebração no palácio de Herodes, o cruel. Ele tinha medo das crianças e mataria todas se assim o desejasse. A mesa do banquete estava posta: leitões assados, lingüiças, bolos e muito vinho... Os músicos tocavam, as dançarinas rodopiavam. Grande era a orgia.

É. Cada um celebra o que escolhe. Acho que vou fazer uma sopa de fubá que tomarei com pimenta e torradas. E lerei poemas e ouvirei música. E farei silêncio quando chegar a meia-noite e, quem sabe, rezarei?"

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Desde já... Feliz Natal!

Hoje, recebi um texto de uma querida amiga, desses que tocam a alma, leve e profundamente. Não é a primeira vez que me presenteia com textos de tamanha delicadeza. Da última vez, não cheguei a falar aqui, "As bençãos do meu avó" (Rachel Naomi Remen - Ed. Sextante - ESGOTADO!) deixou-me maravilhosamente muda. Um dia escreverei a respeito...
Desta vez, "Cartão de Natal" (Frei Betto) pousou em minhas mãos e, num piscar, em meu coração. Aí, já viu, foi inevitável não pousá-lo aqui também.

Lourdinha, OBRIGADA pela generosidade de partilhar e propagar a centelha do bom e do belo em minha vida.




Cartão de Natal (Frei Betto)


"Feliz Natal a quem não planta corvos nas janelas da alma, nem embebe o coração de cicuta e ousa sair pelas ruas a transpirar bom-humor.
Feliz Natal a quem cultiva ninhos de pássaros no beiral da utopia e coleciona no espírito as aquarelas do arco-íris. E a todos que trafegam pelas vias interiores e não temem as curvas abissais da oração.
Feliz Natal aos que reverenciam o silêncio como matéria-prima do amor e arrancam das cordas da dor melódicas esperanças. Também aos que se recostam em leitos de hortênsias e bordam, com os delicados fios dos sentimentos, alfombras de ternura.
Feliz Natal aos que trazem às costas aljavas repletas de relâmpagos, aspiram o perfume da rosa-dos-ventos e levam no peito a saudade do futuro. Também aos que semeiam indignações, mergulham todas as manhãs nas fontes da verdade e, no labirinto da vida, identificam a porta que os sentidos não vêem e a razão não alcança.
Feliz Natal a todos que dançam embalados pelos próprios sonhos e nunca dizem sim às artimanhas do desejo. Aos que ignoram o alfabeto da vingança e jamais pisam na armadilha do desamor, pois sabem que o ódio destrói primeiro a quem odeia.
Feliz Natal a quem acorda, todas as manhãs, a criança adormecida em si e, moleque, sai pelas esquinas quebrando convenções que só obrigam a quem carece de convicções. E aos artífices da alegria que, no calor da dúvida, dão linha à manivela da fé.
Feliz Natal a quem recolhe cacos de mágoas pelas ruas a fim de atirá-los no lixo do olvido e guardam recatados os seus olhos no recanto da sobriedade. A quem resguarda-se em câmaras secretas para reaprender a gostar de si e, diante do espelho, descobre-se belo na face do próximo.
Feliz Natal a todos que pulam corda com a linha do horizonte e riem à sobeja dos que apregoam o fim da história. E aos que suprimem a letra erre do verbo armar e se recusam a ser reféns do pessimismo.
Feliz Natal aos que fazem do estrume adubo de seu canteiro de lírios. Também aos poetas sem poemas, aos músicos sem melodias, aos pintores sem cores e aos escritores sem palavras. E a todos que jamais encontraram a pessoa a quem declarar todo o amor que os fecunda em gravidez inefável.
Feliz Natal aos ébrios de transcendência e aos filhos da misericórdia que dormem acobertados pela compaixão. E a todos que contemplam ociosos o entardecer, observando como o Menino entra na boca da noite montado em seu monociclo solar.
Feliz Natal a quem não se deixa seduzir pelo perfume das alturas e nem escala os picos em que os abutres chocam ovos. E a todos que destelham os tetos da ambição e edificam suas casas em torno da cozinha.
Feliz Natal a quem, no leito de núpcias, promove uma despudorada liturgia eucarística, transubstanciando o corpo em copo inundado do vinho embriagador da perda de si no outro. E a quem corrige o equívoco do poeta e sabe que o amor não é eterno enquanto dura, mas dura enquanto é terno.
Feliz Natal aos que repartem Deus em fatias de pão e convocam os famélicos à mesa feita com as tábuas da justiça e coberta com a toalha bordada de cumplicidades.
Feliz Natal aos que secam lágrimas no consolo da fé e plantam no chão da vida as sementes do porvir. E aos que criam hipocampos em aquários de mistério e conhecem a geometria da quadratura do círculo.
Feliz Natal a quem se embebeda de chocolate na esbórnia pascal da lucidez crítica e não receia pronunciar palavras onde a mentira costura bocas e enjaula consciências. E a todos que, com o rosto lavado das maquiagens de Narciso, dobram os joelhos à dignidade dos carvoeiros.
Feliz Natal a todos que sabem voar sem exibir as asas e abrem caminhos com os próprios passos, inebriados pelos ecos de profundas nostalgias. E aos que decifram enigmas sem revelar inconfidências e, nus, abraçam epifanias sob cachoeiras de magnólias.
Feliz Natal aos que saboreiam alvíssaras nos bosques onde vicejam anjos barrocos e nadam suas gorduras deixando os cabelos brancos flutuarem sobre a saciedade de anos bem vividos. E a todos que dão ouvidos à sinfonia cósmica e, nos salões da Via Láctea, bailam com os astros ao ritmo de siderais incertezas.
Feliz Natal também aos infelizes, aos tíbios e aos pusilânimes, aos que deixam a vida escorrer pelo ralo da mesquinhez e, no calor de seus apegos, vêem seus dias evaporar como o orvalho aquecido pelo alvorecer do verão. Queira Deus que renasçam com o Menino que se aconchega em corações desenhados na forma de presépios."


Simplesmente, maravilhoso!


"Feliz Natal aos que fazem do estrume adubo de seu canteiro de lírios. Também aos poetas sem poemas, aos músicos sem melodias, aos pintores sem cores e aos escritores sem palavras. E a todos que jamais encontraram a pessoa a quem declarar todo o amor que os fecunda em gravidez inefável."

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

De todo quilate


"palavras me aguardam o tempo exato / pra falar / coisas minhas / talvez você nem queira ouvir" (Pra rua me levar - Ana Carolina / Totonho Villeroy)




Quem me conhece um pouco mais de perto sabe que considero a palavra de todo quilate. Mais, nenhum outro elemento diz tanto de quem sou e do que sinto. Pois a palavra sou eu própria: escrita e impressa.

De algum modo eu sempre soube disso, digo desde que descobri a palavra como canal, o ato de escrever como libertador.

Outro dia, isso veio numa clareza pungente quando ouvi a leitura de alguns textos por mim escritos, lidos por outra pessoa. A ausência de pontuação, o ritmo acelerado da leitura como se quisesse findá-la rapidamente (e por um fim a mim????) soaram como um esvaziamento de quem sou. Na rapidez com a qual fui lida, o sentido se perdeu. Pois não se tratava de me tragar por ardente desejo, antes de livrar-se e negar ali a existência de algo minimamente interessante.

Lembrei de imediato de alguns anos atrás quando me submeti a uma prova de habilidade datilográfica, onde o texto era, sob certo aspecto, secundário. Importava, antes de tudo, que as palavras fossem datilografadas correta e velozmente.

Fui ferida de mortal desprezo. Depois disso, penso mesmo que deveriam constar nos manuais de etiqueta, boas maneiras de se ler um texto. Porque por mais que a gente queira, possa e deva dele se apropriar, é preciso antes aproximar-se com certa gentileza na alma, com respeito diante do que foi escrito, independente se dotado de algum atributo literário ou simplesmente confessional.

Obviamente, todos nós temos nossas preferências e rejeições textuais (e pessoais). Apenas penso que antes de abrir as nossas gavetas e decidir sobre o que vai ou não ocupá-las, é preciso um certo despojamento das impressões primeiras. Pois um texto, em geral, se permite, sim, a releitura, mas as pessoas, bem, as pessoas às vezes não.



Observação: acréscimo (20/12/2007, madrugada)

Iniciei a postagem do dia 22/12 com um fragmento da composição "Pra rua me levar" (A. Carolina / T. Villeroy). Ouvindo "Muito romântico" (Caetano Veloso) hoje, fui me dando conta do quanto parte da letra, de algum modo ou de todos eles, também se relaciona com o que postei. Por isso o acréscimo.


"Não tenho nada com isso nem vem falar / Eu não consigo entender sua lógica / Minha palavra cantada pode espantar / E a seus ouvidos parecer exótica / Mas acontece que eu não posso me deixar / Levar por um papo que já não deu / Acho que nada restou pra guardar / Do muito ou pouco que houve entre você e eu / Nenhuma força virá me fazer calar / Faço no tempo soar minha sílaba / Canto somente o que pede pra se cantar / Sou o que soa eu não douro a pílula" (Muito romântico - Caetano Veloso)

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Poema de Natal

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

(Vinicius de Moraes)

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Meu Deus, me dê a coragem

"Meu Deus, me dê a coragem de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites, todos vazios de Tua presença. Me dê a coragem de considerar esse vazio como uma plenitude. Faça com que eu seja a Tua amante humilde, entrelaçada a Ti em êxtase. Faça com que eu possa falar com este vazio tremendo e receber como resposta o amor materno que nutre e embala. Faça com que eu tenha a coragem de Te amar, sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo. Faça com que a solidão não me destrua. Faça com que minha solidão me sirva de companhia. Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar. Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo. Receba em teus braços meu pecado de pensar." (Clarice Lispector)


Amém!

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Se a brancura da folha fosse vela


Bebo o breu,
provoco o verso
e em cada palavra que tro-pe-ço
é um pouco de mim que
c
a
i

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Estações


Para Padrinho (in memorian)


Na primavera brotaram
Flores mortas num caixão
Germinaram como nunca
O silêncio, a solidão...

O verão, todo faceiro
Quis apagar medonha estação
"É bem tarde!", retruquei
No calor da emoção.

O outono veio lento
Se esparramando no chão
Brincaram suas folhas ao vento
Mas faltou a direção.

Por fim e amofinado
O inverno apenas chorou
E com suas lágrimas frias
Agasalhou-se com a dor.

(VaneideDelmiro)

sábado, 8 de dezembro de 2007

ESSE TAL ENCANTAMENTO

Há sentimentos e atitudes tão clichês que se chega mesmo a duvidar de si próprio quando não se atende a um “certo” formato de pensar, sentir ou expressar-se. Acredito que essa seja uma das razões que me tem feito silenciar.

Após a morte de padrinho – nunca antes eu experimentara a morte física de alguém tão importante –, digo nas semanas que se seguiram (e até agora) foi um não saber o que sentir e, ao mesmo tempo, um querer sentir.

Primeiro foi o luto burocrático das decisões. Depois a descoberta aterradora das máscaras e a raiva contida ante tamanha constatação. Na seqüência foram a busca incessante por explicações, a tentativa de fortalecimento espiritual pelejando contra minha fé duvidosa e um ressignificar do que seria, a partir de então, seguir adiante: viver?!

Nesse trajeto – longo, sinuoso, lento – saudade, tristeza, dor, inconformismo, arrependimento, vazio etc etc etc compuseram também a paisagem. Chorei menos do que esperava, desesperei menos do que supunha e andei me cobrando caro por isso, talvez por conta dos tais clichês.

É que a lágrima é para o olho assim como a palavra é para a boca: expressão. E só aos poucos, muito a vagar, passei a aceitar o que já sabia, que as expressões clichês não são as únicas verdadeiras. Aliás, nem sempre o são. Esse congelamento de onde vos falo não é vazio de sentido, mas pleno dele.

Padrinho permanece numa presença inquestionável. As lembranças dele são as melhores. Na maioria das vezes eu sinto paz quando penso nele e, de algum modo, muito íntimo, eu sei e sinto que estamos em comunhão, o que me faz pensar que sua proteção permanece como antes, apesar de todas as minhas incertezas e medos.

Agora lembrando Guimarães Rosa – “as pessoas não morrem, ficam encantadas” – fico me perguntando se não estive até agora, com este texto, tentando dizer desse tal encantamento.


"Depois de te perder, te encontro com certeza
Talvez no tempo da delicadeza
Onde não diremos nada, nada aconteceu
Apenas seguirei como encantado ao lado teu"

(Todo Sentimento - Chico Buarque / Cristovão Bastos)

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

INVESTIDAS FANTASMAGÓRICAS...


A morte torna o Deus Cronos irreconhecível e traz, como em nenhuma outra situação, o sentimento do irreparável.
É estranhíssimo tentar assimilar algo real mas que ressoa tão fantasioso, apesar de tantas evidências cotidianas: o lugar vazio na mesa, o jornal recolhido, um varal sem toalha, uma casa que não acorda ao som de uma voz, a expectativa de uma chegada que não chega, que não chega, que não chega mais.
E como se não fosse suficientemente cruel a sua ausência, é terrível a tentativa de me transformarem também num fantasma. Por mais que tente, é impossível não ver nisto um assassinato, ainda que simbólico, com consequências pra lá de imaginárias: reais.
Hoje, em mais uma dessas investidas fantasmagóricas a que tentaram me submeter, reparei o quanto a "diplomacia" se presta à covardia, fazendo dela seu aparente disfarce. Se pessoas se omitem em nome da Verdade, imagino o que não são capazes de fazer por causas bem pouco nobres. Restou-me calar face a tamanho desapontamento.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Que tinha tu com este mundo dos homens?

"(...)
E aqui morreste! Oh, tua morte é a minha, que, enganada,
recebes. Não te queixas. Não pensas. Não sabes. Indigno,
ver parar, pelo meu, teu inofensivo coração.
Animal encantado - melhor que nós todos!
- que tinhas tu com este mundo
dos homens?
(...)"

(Cecília Meireles)

domingo, 18 de novembro de 2007

Agora eu sei...



"Coisas que eu sei...
O medo mora perto das idéias loucas
Coisas que eu sei...
As noites ficam claras no raiar do dia
Coisas que eu sei...
São coisas que antes eu somente não sabia
Agora eu sei...
Agora eu sei..."

(Coisas que eu sei - Composição: Dudu Falcão / Intérprete: Danni Carlos)

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

A salvação?


"Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Por que eu escrevo? Para me manter viva."
(Clarice Lispector)

"Quem escreve, escreve um pouco por isso: por se sentir transitório, passageiro, e pela urgência de dizer, de se dizer, de deixar, talvez, suas cicatrizes sobre a terra."
(Trecho: Revista Continente Multicultural, Dez./2004)

ESCRITA GEMINIANA


A folha em branco se desloca para a tela. Faz um silêncio profundo e dolorido. Pressinto um daqueles momentos em que a escrita transita entre o urgente e o inalcansável. Será que a escrita é geminiana? E se salva - como creio e sinto - a que horas lancará mão de seus super poderes e enfraquecerá, com uma única palavra, esse maléfico silêncio?
Algo da morte reside no silêncio, afinal, não à toa, a vida recém saída do ventre irrompe em grito, choro, som.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Tão jovem, a morte (Lya Luft)


"A rainha da nossa perplexidade, que torna o presente tão importante, o amor tão urgente, a bondade tão necessária, a ética tão essencial, a arte tão fundamental - ela, a Senhora Morte, devia, por inevitável, nos tornar muito melhores do que somos.
Muito mais prudentes. Muito mais audaciosos. Muito mais abertos para a vida, a alegria, a claridade, em lugar de tão enredados em nossas mesquinhas intrigas, nossas cotidianas reclamações, nossas minúsculas vinganças.
Porque só uma vida bem vivida, com decência e generosidade, prepara, ainda que sem muita garantia, isso que chamamos morte: que nos espreita na cama, no carro, no avião, na calçada, ou na mira de algum terrorista alucinado."



Um belo texto pra regar esse terreno árido vocabular que tenho habitado desde que "vi a cara da morte e ela estava viva, viva" (Cazuza).

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

SAUDADES

Poema
Cazuza / Frejat

Eu hoje tive um pesadelo
E levantei atento, a tempo
Eu acordei com medo
E procurei no escuro
Alguém com o seu carinho
E lembrei de um tempo

Porque o passado me traz uma lembrança
De um tempo que eu era ainda criança
E o medo era motivo de choro
Desculpa pra um abraço, um consolo

Hoje eu acordei com medo
Mas não chorei nem reclamei abrigo
Do escuro, eu via o infinito
Sem presente, passado ou futuro
Senti um abraço forte, já não era medo
Era uma coisa sua que ficou em mim
E que não tem fim

De repente, a gente vê que perdeu
Ou está perdendo alguma coisa
Morna e ingênua que vai ficando no caminho
Que é escuro e frio, mas também bonito porque é iluminado
Pela beleza do que aconteceu há minutos ou anos atrás



"Poema foi composto por Cazuza para a sua avó paterna, Maria, em 1975, quando ele tinha 17 anos. Foi musicado em 1998 por Frejat." (Araújo, Lucinha. CAZUZA - PRECISO DIZER QUE TE AMO: todas as letras do poeta. São Paulo: Globo, 2001).
Ouvi-la também na voz de Ney Matogrosso redimensiona a beleza e a intensidade da composição.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

A urgência continua...

Mais uma vez o inesperado nos assalta; nos assalta e nos rouba o bem mais precioso: a vida. A vida de Padrinho e também a de cada um de nós que com ele conviveu. A bem da verdade (da minha verdade - único lugar de onde ainda posso falar), a morte sempre me pareceu uma espécie de mágica que não deu certo, porque toda a mágica que se preze deve ser capaz de reverter o fenômeno, a transformação, o estado... Mas na morte - essa mágica pelo avesso - só há uma passagem, e definitiva, pelo menos no plano terrestre.

P.S. Hoje o tempo para saudades foi diminuto, espremido pela burocracia e providências mil. A morte burocrática é enfadonha e cruel e, como se não bastasse, os papéis não se revelam em suas gavetas agora taciturnas.

Morre-se e, no entanto, a urgência continua.

sábado, 27 de outubro de 2007

BLUES FÚNEBRE

Que parem os relógios, cale o telefone,
jogue-se ao cão um osso e que não ladre mais,
que emudeça o piano e que o tambor sancione
a vinda do caixão com seu cortejo atrás.

Que os aviões, gemendo acima em alvoroço,
escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu.
Que as pombas guardem luto — um laço no pescoço —
e os guardas usem finas luvas cor-de-breu.

Era meu norte, sul, meu leste, oeste, enquanto
viveu, meus dias úteis, meu fim-de-semana,
meu meio-dia, meia-noite, fala e canto;
quem julgue o amor eterno, como eu fiz, se engana.

É hora de apagar estrelas — são molestas —
guardar a lua, desmontar o sol brilhante,
de despejar o mar, jogar fora as florestas,
pois nada mais há de dar certo doravante.

(W.H. Auden)

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Please send me a letter...

Para M.D.

Em mim nenhuma dúvida repousa sobre a sua importância em minha vida. Talvez não seja exagero compará-lo a Théo ou ao "mano Caetano", este último disparado de sua mais absoluta preferência. Mas hoje, após colecionar mais um desencontro amoroso e experimentar estilhaços febris de um a(feto), diria que a loucura de Van Gogh revelaria mais de quem sou do que toda a poesia de Maria Bethânia. Mas, por favor, não deixe de notar a beleza que emana em ambos, às vezes de uma expressão violenta, noutras da mais pura suavidade.
Curioso que a gente partilhe tantas coisas em comum e, ao mesmo tempo, tanto silêncio. Acredito mesmo que você não suportaria saber ou presenciar as minhas fraquezas, e talvez querer me ver e ter forte faça-te tão duro comigo, tantas vezes.
Ah, são nossos jeitos estúpidos de amar.


"Maria Bethânia, please send me a letter
I wish to know things are getting better"
(Caetano Veloso)

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

O GATO MALHADO E A ANDORINHA SINHÁ...


Redescubro em "O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá: uma história de amor" (Jorge Amado) que o prazer da releitura pode ser tão ou maior que o da prórpia leitura. A visualização da capa do livro, na prateleira da livraria, disparou a lembrança da primeira leitura, há 17 anos, quando fui apresentada, sem o saber, aquela que hoje considero a prosa mais poética que já li (Obrigada, Lourdinha!). É uma história maravilhosa, com descrições preciosas e delicadas sobre o cenário, personagens e, sobretudo, sentimentos. Sem falar das iluminuras e ilustrações do livro (Caribé), de uma beleza pueril. É tentador o desejo de escrever / comentar sobre a história, mas não foi atendê-lo por um motivo básico: não quero correr o risco de reduzir o encanto da história e, com isso, comprometer, ainda que minimamente, o interesse de algum curioso leitor ou leitora. É claro que este risco é mesmo muitíssimo reduzido, já que não tenho conhecimento de possíveis visitas por estas paragens virtuais. Acho mesmo que se trata de uma paisagem um tanto inóspita, pois nem gato ou andorinha, sequer borboletas passam ou pousam aqui. Talvez eu não esteja cuidando bem deste jardim, mas isso já é outro departamento: departamento das prováveis ausências e improváveis presenças.
O que eu apenas queria destacar neste momento, acerca do texto de Jorge Amado, é que o autor, simples e sabiamente, adotou como subtítulo "uma história de amor", talvez por acreditar que o mais importante estava aí e não no impossível que se revela ao longo das estações.


"Era uma vez antigamente, mas muito antigamente, nas profundas do passado quando os bichos falavam, os cachorros eram amarrados com lingüiça, alfaiates casavam com princesas e as crianças chegavam no bico das cegonhas. Hoje os meninos e meninas já nascem sabendo tudo, aprendem no ventre materno, onde se fazem psicoanalisar para escolher cada qual o complexo preferido, a angústia, a solidão e a violência. Aconteceu naquele então uma história de amor." (Jorge Amado)

terça-feira, 2 de outubro de 2007

PRIMO BASÍLIO

Em meio a inércia e a febre mal anunciada destes dias e como não pudesse dispensar a minha própria companhia, por pura falta de opção, fui comigo ao cinema ver Primo Basílio. Sou suspeita quando se trata de filme nacional, mesmo não sendo uma nacionalista de carteirinha como o personagem Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. Eu não queria falar sobre o filme propriamente, mas da fragilidade das relações humanas, do passado se enraizando no presente, trazendo-lhe beleza e uma quase falsa promessa de resgate. Eu queria falar da culpa, cujo estrago, no filme, se revelou maior que a própria infidelidade. E não será assim também da vida real e para além das relações conjugais? Fiquei pensando no nocivo que é não nos perdoarmos por erros, omissões, gritantes silêncios. Na culpa que carregamos por tudo que ficou suspenso, pelo que se extrapolou, pelo que nem sequer se ousou sonhar. A culpa-ímpar-inconfessa-que-não-se-dissolve-nunca, nem mesmo quando todos te perdoam, porque é uma infame culpa íntima e vai matando uma verdade em você, qualquer que seja, mas é a sua e se precisa, sim, ser complacente consigo própria. É preciso, sim, colocar os "monstros no colo" (bela expressão utilizada por Marcia Tiburi, escritora e filósofa, no programa Sempre Um Papo). Não, nada disso é preciso. Tudo isso é urgente. É pra agora, é pra ontem, é pra décadas atrás. Oh, indócil monstro dá culpa, por que és tão aterrador, tão mortificante, tão gigantesco? Aceita o calor de uma alma trêmula, mas quente, sedenda por perdão.

sábado, 15 de setembro de 2007

"Ando meio fatigado de procuras inúteis e sedes afetivas insaciáveis."
(Caio Fernando Abreu)

domingo, 9 de setembro de 2007

COISA ALGUMA...

Estive entretida entre coisa alguma, todos esses dias, desde a última vez. E volto assim: passos lentos, mãos vazias, memória viva e palavras mudas.



"Fico tão cansada às vezes, e digo para mim mesma que está errado, que não é assim, que não é este o tempo, que não é este o lugar, que não é esta a vida. (...) então eu não sentia nada, podia fazer as coisas mais audaciosas sem sentir nada, bastava estar atenta como estes gerânios, você acha que um gerânio sente alguma coisa? Quero dizer, um gerânio está sempre tão ocupado em ser um gerânio e deve ter tanta certeza de ser um gerânio que não lhe sobra tempo para nenhuma outra dúvida..."
(Caio Fernando Abreu)



Ao som de: stuck in a moment you can't get out of (U2)

sábado, 25 de agosto de 2007

CALE-SE

Todos estes dias sem postar uma única frase, poema, fragmento de alguma leitura, um comentário qualquer... Mas não esqueço:

(...)
Mesmo calada a boca, resta o peito
(...)
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
(chico Buarque - Cálice)

sexta-feira, 10 de agosto de 2007

AMOR É BICHO INSTRUÍDO

Amor é bicho instruído
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.

Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.

Essa ferida, meu bem
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES

Enquanto o sono segue impassível a qualquer apelo - tribulações do dia, tarja preta, desejo de sonhar -, e essa vontade louca de escrever se frusta a cada letra gerada e não parida, eu (re)corro à Clarice, num velho caderno de notas. É lá que (me) encontro...



Fragmentos:


"(...) com um amor feito de escuridões e clarões"

"(...) pois agora mansamente, embora de olhos secos, o coração estava molhado"

"Proteção seria presença?"

"(...) uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos impurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida. Foi apesar de que parei na rua e fiquei olhando pra você enquanto você esperava um táxi. E desde logo desejando você, esse teu corpo que nem sequer é bonito, mas é o corpo que eu quero. (...) Por isso, não faz mal que você não venha, esperarei quanto tempo for preciso"

"(...) a vida não é de se brincar porque em pleno dia se morre"

"Teria sido esperteza dela avançar no tempo, e imperdoável ser mais sabida que os outros. Por isso, apesar da curiosidade intensa que tinha pela morte, Lóri esperava"

(Clarice Lispector)

terça-feira, 7 de agosto de 2007

DEPOIS DA SESSÃO...

Eu só espero que Deus seja misericordioso com a minha inabilidade para viver, esta sim, extraordinária, e me conceda para cada arrependimento uma gotícula que seja de aproveitamento.
Amém.

sábado, 4 de agosto de 2007

ARCO-ÍRIS...

Hoje à tarde eu estava tão triste
Chovia e o vento balançava o quintal
Abri a janela
E no meio do cinza
O arco-íris era o teu sinal

VaneideDelmiro

terça-feira, 31 de julho de 2007

FELICITAÇÕES...

Querido Blog,

Amanhã você completará um mês de aniversário. É uma data importante, afinal marca o seu nascimento. E nascimento significa irromper... Eu sei que foi um parto um pouco difícil e que os cuidados com você talvez deixem a desejar. Espero que compreenda a inexperiência de mãe que, por vezes, subjuga o próprio amor. Gostaria de te presentear com um belo poema ou texto, mas ficarei apenas na intenção. Não é bom escolher o presente com a alma assim, tão inquieta, longe de si. Peço-te desculpas, também, se hoje não receberes nenhuma visita. Aliás tenho me perguntado se a solidão é um gene e se você o herdou. Mas é bom que desde logo aprendas a viver sozinho, pode ser muito útil nos dias atuais.
Bem, desejo-te vida longa e muitas palavras que vêm, vão, voam e pousam. Penso que não seria contraditório te desejar, ainda, alguma boa companhia.

SOBRE O TÍITULO DO BLOG...

A minha idéia inicial era que a primeira postagem deste Blog tratasse do título escolhido: Asa da Palavra. Não seria exatamente uma justificativa, mas uma explicitação das razões pelas quais fiz esta escolha em detrimento de outras que, por vezes, ainda penso serem mais adequadas. Mas devo confessar o meu carinho pela expressão "asa da palavra", retirada de uma composição de Caetano Veloso e Milton Nascimento (A Terceira Margem do Rio), inspirados no conto, de mesmo nome, de Guimarães Rosa. Falaria também dos inspiradores poemas de Manoel de Barros e toda a idéia de liberdade e libertação que a palavra me traz e dá sem que eu possa apontar nenhum outro equivalente. No entanto, todas essas seriam, por assim dizer, razões à priori. Mas hoje, ao descobrir um belo poema de Cecília Meireles, fiquei certa que se o tivesse conhecido antes, seguramente o apontaria como uma das razões para o título Asa da Palavra. É um daqueles poemas que te deixam com uma vontade danada de tê-lo escrito. Vou pousá-lo aqui no blog para que outros também o apreciem.



VÔO

Alheias e nossas as palavras voam.
Bando de borboletas multicores, as palavras voam
Bando azul de andorinhas, bando de gaivotas brancas,
as palavras voam.
Viam as palavras como águias imensas.
Como escuros morcegos como negros abutres, as palavras voam.
Oh! alto e baixo em círculos e retas acima de nós, em redor de nós as palavras voam.

E às vezes pousam.

(Cecília Meireles)

quinta-feira, 26 de julho de 2007

ESTRANHA MÁQUINA DE ENTORTAR HOMENS

Fragmento de TERRA DOS HOMENS (Antonie de Saint-Exupéry)

"Uma criança chupava o seio de sua mãe que de tão cansada parecia dormir. A vida transmitia-se assim no absurdo e na desordem daquela viagem. Olhei o pai. Um crânio pesado e nu como uma pedra. Um corpo dobrado no desconforto do sono, preso nas suas vestimentas de trabalho, um rosto escavado com buracos de sombra e saliências de ossos. Aquele homem parecia um monte de barro. Era como um desses embrulhos sem forma que se deixam ficar à noite nos buracos das feiras. E eu pensei: o problema não reside nessa miséria, nem nessa sujeira, nem nessa fealdade. Mas esse homem e essa mulher sem dúvida se conheceram um dia, e o homem sorriu para a mulher; levou-lhe, sem dúvida, algumas flores depois do trabalho.
Tímido e sem jeito, ele temia ser desprezado. Mas a mulher, por fagueirice natural, a mulher, certa de sua graça, talvez se divertisse em inquietá-lo. E ela, que hoje é apenas uma máquina de cavar ou de martelar, sentia assim no coração uma deliciosa angústia. O mistério está nisso: eles se terem tornado esses montes de barro. Por que terrível molde terão passado, por que estranha máquina de entortar homens? Um animal ao envelhecer conserva a sua graça. Porque essa bela argila humana se estraga assim?"



É um livro e tanto!

domingo, 22 de julho de 2007

FRASEADOR...

Manoel de Barros foi uma deliciosa descoberta que veio através da indicação de uma artista plástica, Maria do Bessa (hoje Maria dos Mares), com quem tive a grata experiência de trabalhar em oficinas de artes, num ambulatório de saúde mental, há quase uma década. O fascínio e a admiração pelo trabalho de Maria, sobretudo com o "barro", se estendeu também ao poeta tecendo o delírio do verbo. Dos textos e poemas lidos desde então, um me toca particularmente, pela beleza e sensibilidade. Melhor apresentar...


"HOJE EU COMPLETEI OITENTA E CINCO ANOS. O POETA NASCEU DE TREZE. NAQUELA OCASIÃO ESCREVI UMA CARTA AOS MEUS PAIS, QUE MORAVAM NA FAZENDA, CONTANDO QUE EU JÁ DECIDIRA O QUE QUERIA SER NO MEU FUTURO. QUE EU NÃO QUERIA SER DOUTOR. NEM DOUTOR DE CURAR NEM DOUTOR DE FAZER CASA NEM DOUTOR DE MEDIR TERRAS. QUE EU QUERIA SER FRASEADOR. MEU PAI FICOU MEIO VAGO DEPOIS DE LER A CARTA. MINHA MÃE INCLINOU A CABEÇA. EU QUERIA SER FRASEADOR E NÃO DOUTOR. ENTÃO, O MEU IRMÃO MAIS VELHO PERGUNTOU: MAS ESSE TAL DE FRASEADOR BOTA MANTIMENTO EM CASA? EU NÃO QUERIA SER DOUTOR, EU SÓ QUERIA SER FRASEADOR. MEU IRMÃO INSISTIU: MAS SE FRASEADOR NÃO BOTA MANTIMENTO EM CASA, NÓS TEMPO QUE BOTAR UMA ENXADA NA MÃO DESSE MENINO PRA ELE DEIXAR DE VARIAR. A MÃE BAIXOU A CABEÇA UM POUCO MAIS. O PAI CONTINUOU MEIO VAGO. MAS NÃO BOTOU ENXADA".
(Manoel de Barros - Memórias Inventadas - Infância)




As letras maiúsculas são pra reafirmar o quanto gosto do texto.

quarta-feira, 18 de julho de 2007

O TEMPO DE AGORA...

Nem sempre podemos habitar a casa na qual nos sentimos realmente acolhidos. Por vezes, temos de protelar o vôo desejado. Esse é o tempo de agora: de renunciar a asa da palavra.


"O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente na horinha em que se quer, de propósito - por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia"
João Guimarães Rosa (Grande Sertão: veredas)

segunda-feira, 9 de julho de 2007

REMOTO CONTROLE....

Passados alguns dias em silêncio, estou de volta. Não, não estava com a asa quebrada, apenas precisei voar por outras paisagens: mais técnicas, menos poéticas.
E pra registrar meu retorno, resolvi postar um texto que não é exatamente uma reflexão, nem propriamente um desabafo. O fato é que a idéia ressurgia cada vez que me deparava com uma cena de novela, global ou não. Então decidi desativar o controle remoto e acionar a escrita.



REMOTO CONTROLE (VaneideDelmiroNeves)

Modificam-se os nomes, com eles as personagens; o cenário; os horários; os modos de dizer e de vestir, mas a trama ainda é a mesma. E seduz tanto quanto no início, ou talvez mais, pois os recursos, estes, sim, são outros e inauguram novas feições para as mesmas caras.

Não quero ser injusta porque tanta mesmice sedutora tem lá a sua função, nem que seja – o que não é pouco, reconheço – a de satisfazer nossas necessidades e desejos inconfessos; transformar em realidade o que, em nós, não passa de ilusão; canalizar fantasias, exterminar fantasmas; projetar a maldade que não ousamos admitir e pulsar forte.

Mas também fere. Fere não ser a mulher cortejada pelo homem maduro, elegante, gentil, rico e, como se não bastasse, disposto a mover céus e terras para provar que o amor vale a pena. Fere não ser aquela outra, executiva bem sucedida, exalando poder e sedução por todos os poros. Ou, mesmo, a adolescente que acaba de descobrir o peito arfante em paixão, de quebra por um amor proibido (assim dá mais audiência) e que encontrará, ao longo dos capítulos, incontáveis obstáculos para viver o seu afeto, sendo, ao final (desculpem tanta previsibilidade, a culpa não é minha!), recompensada com um beijo ardente, daqueles de tirar as crianças da sala, te fazer subir pelas paredes ou suspirar por uma antiga lembrança.

Fere não ser o vilão, porque apesar do mau caratismo, seu vigor e determinação são, no mínimo, invejáveis. Fere não encarnar o bom moço, sempre disposto a ajudar; àquele que leva a máxima ao máximo: “se alguém te bater numa face, oferece também a outra”. Fere não ser a vítima – coitada! – , com um rol de injustiças “justificando” o que não deu certo: sua vida de desencontros e atrapalhos.

Fere, simplesmente. Fere não me enquadrar e, ainda assim, ver tantas facetas de mim espalhadas em quem não sou. Por isso recorro à escrita, para não torná-la também remota.


JPA, 08/JUL/2007

quinta-feira, 5 de julho de 2007

A NOITE TAMBÉM...

TUA MANHÃ SE CURVA (Iacyr Anderson Freitas)


Chegará a hora,
sob o mesmo assombro.

Tudo por fazer, a casa em desordem.
Nenhum dever cumprido.

O mesmo vazio bate à porta.
Não tens palavra. De novo
essa ausência de linguagem
que distende o mundo.

Tesouro algum foi buscado?
No horizonte houve um rumo? Uma medida?

A tudo respondes com rancor.
No mais íntimo de teu corpo
algo se move.

O tempo não traz resposta. A madureza
punge os ossos: tua manhã se curva.

Por fim, o asco. Preso à mão
quando a mão se escreve.

Aprende-se a conviver com ele
sem temor. O que era incômodo
faz-se vício.

Mas o mergulho é curto:
a dor te chama pelos cabelos.
Vens à tona.

De novo
o olhar irrefletido, de bicho,
sem notícia do tempo submerso.

De novo
a imperiosa vontade de viver,

que não deixa de ser, no fundo,
uma forma menor
de esquecimento.




Eu sempre me impressionou com o fato de um texto, cuja autoria não é própria, ser capaz de dizer tanto e tão bem sobre o que se está vivendo ou sentindo num dado momento. É uma espécie de eco que vem em resposta a uma voz muda, trazendo consolo a quem experimenta uma terrível solidão: sem par, indo a parte alguma.

terça-feira, 3 de julho de 2007

O ESPÍRITO DO DIA...

Prosa Patética (Viviane Mosé)

Nunca fui de ter inveja, mas de uns tempos pra cá tenho tido.
As mãos dadas dos amantes tem me tirado o sono.
Ontem, desejei com toda força ser a moça do supermercado.
Aquela que fala do namorado com tanta ternura.
Mesmo das brigas ando tendo inveja.
Meu vizinho gritando com a mulher, na casa cheia de crianças,
sempre querendo, querendo.
Me disseram que solidão é sina e é pra sempre.
Confesso que gosto do espaço que é ser sozinho.
Essa extensão, largura, páramo, planura, planície, região.
No entanto, a soma das horas acorda sempre a lembrança
do hálito quente do outro. A voz, o viço.
Hoje andei como louca, quis gritar com a solidão,
expulsar de mim essa Nossa senhora ciumenta.
Madona sedenta de versos. Mas tive medo.
Medo de que ao sair levasse a imensidão onde me deito.
Ausência de espelhos que dissolve a falta, a fraqueza, a preguiça.
E me faz vento, pedra, desembocadura, abotoadura e silêncio.
Tive medo de perder o estado de verso e vácuo,
onde tudo é grave e único. E me mantive quieta e muda.
E mais do que nunca tive inveja.
Invejei quem tem vida reta, quem não é poeta
nem pensa essas coisas. Quem simplesmente ama e é amado.
E lê jornal domingo. Come pudim de leite e doce de abóbora.
A mulher que engravida porque gosta de criança.
Pra mim tudo encerra a gravidade prolixa das palavras: madrugada, mãe, ônibus, olhos, desabrocham em camadas de sentido,
e ressoam como gongos ou sinos de igreja em meus ouvidos.
Escorro entre palavras, como quem navega um barco sem remo.
Um fluxo de líquidos. Um côncavo silêncio.
Clarice diz, que sua função é cuidar do mundo.
E eu, que não sou Clarice nem nada, fui mal forjada,
não tenho bons modos nem berço.
Que escrevo num tempo onde tudo já foi falado, cantado, escrito.
O que o silêncio pode me dizer que já não tenha sido dito?
Eu, cuja única função é lavar palavra suja,
nesse fim de século sem certeza?
Eu quero que a solidão me esqueça.

segunda-feira, 2 de julho de 2007

Perdoando Deus (Clarice Lispector)

"Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente."

domingo, 1 de julho de 2007

PALAVRA CALA?

Melhor nem falar...
A Palavra

Já não quero dicionários
consultados em vão.
Quero só a palavra
que nunca estará neles
nem se pode inventar.

Que resumiria o mundo
e o substituiria.
Mais sol do que o sol,
dentro da qual vivêssemos
todos em comunhão,
mudos,
saboreando-a.
(Carlos Drummond de Andrade)



De Gramática e de Linguagem

Eu sonho com um poema
Cujas palavras sumarentas escorram
Como a polpa de um fruto maduro em tua boca,
Um poema que te mate de amor
Antes mesmo que tu saibas o misterioso sentido:
Basta provares o seu gosto...
(Mário Quintana)

CADA PALAVRA....

"Palavras me aguardam o tempo exato pra falar
São coisas minhas
Talvez você nem queira ouvir..."

(Ana Carolina / Totonho Villeroy)



"Só uma palavra me devora
Aquela que meu coração não diz..."

(Suley Costa / Abel Silva)



"Se disparada pelo amor
Palavra-bala
Na boca do ditador
Toda palavra cala

Ô, mama
Cala palavra
Ô, mama, ô, mama
Mama palavra

Quando não se quer ouvir
Palavra-mala
Quando não se faz sentir
Pobre palavra rala
Ô, mama
Rala palavra
Ô, mama, ô, mama
Mama palavra

Em volta da mesa do bar
Palavra-porre
Se o tédio me assaltar
Palavra me socorre
Ô, mama
Cada palavra
Ô, mama, ô, mama
Mama palavra

Se gritar pega ladrão
Palavra corre
Quando não se tem tesão
Toda palavra morre
Ô, mama
Morre a palavra
Ô, mama, ô, mama
Mama palavra

Mãe de todos nós
Dos sem mãe
Dos sem voz

Na fala do policial
Palavra-malha
No distrito federal
Toda palavra encalha
Toda palavra encalha

Aquela que não funcionar
Palavra-falha
Aquela que não se juntar
Vira palavra-tralha
Tralha

Quando tudo fala igual
Palavra-palha
Pra tudo que é marginal
Palavra que batalha
Palavra que batalha

Aquela que não funcionar
Palavra-falha
Aquela que não se juntar
Vira palavra-tralha
Tralha"

(Mama Palavra - João Bosco / Francisco Bosco)




Se o que nos consome fosse apenas fome
Cantaria o pão
Como o que sugere a fome
Para quem come
Como o que sugere a fala
Para quem cala
Como que sugere a tinta
Para quem pinta
Como que sugere a cama
Para quem ama
Palavra quando acesa
Não queima em vão
Deixa uma beleza posta em seu carvão
E se não lhe atinge como uma espada
Peço não me condene oh minha amada
Pois as palavras foram pra ti amada
Pra ti amada
Oh! pra ti amada

(Palavra Acesa / José Chagas e Fernando Filizola)


PALAVRA VOA?

Como pensar o contrário? Palavra voa, some, renasce, mortifica, aprisiona, liberta, emudece, se recusa, se oferece... A palavra é quase humana, corrijo, a palavra é humana.