sábado, 18 de outubro de 2008

Recusa da Palavra

"O que eu vi, sempre, é que toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo."
(Guimarães Rosa / Grande Sertão: veredas)



Será possível ficarmos imunes a casos como o da menina Isabella e, mais recentemente, o da adolescente Eloá?

Que estranhos sentimentos brotam tal qual erva daninha quando nos deparamos com a fragilidade humana?

Não quero poetizar a violência porque diante dela não há poesia possível. E se for para enfear o verso que lhe seja dada uma rima pobre, o que seria infinitamente mais belo que qualquer gesto contra a vida.

Mas o que fere a vida? Arremessar uma criança covardemente do sexto andar? Disparar uma arma contra quem se diz amar? Atos ferinos, feridas incicatrizáveis. Barbáries estarrecedoras ferem a vida. Ações vis, de notória crueldade também. Geram consenso, desejo coletivo de vingança, traduzido num perigoso “fazer justiça com as próprias mãos”.

Mas a vida, de tão frágil, a vida não precisa tanto, se fere com muito menos. Sutilezas do falar e do calar atingem a alma humana, podendo mesmo mortificá-la.

Em meio ao bombardeio midiático da última semana sobre o “seqüestro de Santo André” a fala do jovem Lindemberg Alves, “o seqüestrador”, em entrevista concedida a uma emissora de TV, me chamou atenção. Segundo ele o seu ato teria decorrido do fato de sua ex-namorada negar-se a conversar após o término do relacionamento. Um de seus amigos, num flash televisivo, atribuiu o seqüestro ao que denominou “recusa da palavra”.

Não convém aqui especular acerca da legitimidade das razões que impeliam Linderberg a falar e Eloá a não querer ouvi-lo. Tampouco cair no movediço terreno do “se”: se ele tivesse falado, se ela tivesse escutado, se... etc. etc. etc. O se, como bem indica sua consoante, é sempre sinuoso.

Convém, sim, pensar sobre essas duas dimensões – o falar e o ouvir – cuja força mesmo para nós, falantes e ouvintes, ainda nos é desconhecida, pouco desvendada.

Às vezes, dizem, fala-se por falar... Mas o falar pede o seu complemento, ainda que seja uma escuta íntima, de si para si.

Penso que o sentido do falar e do ouvir se esvai quando se dá por imposição. Impor silêncio a quem necessita falar é, num certo sentido, um ato de violência. Impor a fala a quem não deseja ouvi-la também. Eximir-se da palavra quando ela abre portas a esclarecimentos, antes mesmo de ser violento, é um ato covarde. Guardá-la na manga como um trunfo para, no momento oportuno, endereçá-la com furor pacífico (“palavras duras em voz de veludo”*) é reconhecidamente de uma requintada crueldade. Ouvir alguém que apresenta uma perspectiva diferente da sua pode ferir como bala a certeza e a arrogância de muitos.

Decerto que a palavra não é infalível, por vezes ela própria é fonte de desentendimentos. Curiosamente no caso do "seqüestro de Santo André", a despeito de todo arsenal policial, a palavra dotada de seu estranho poder alquímico era a principal arma dos negociadores, no entanto algo falhou e "o tiro", para usar expressão corrente, "saiu pela culatra".

Meu repúdio ao silêncio que não engendra a paz e a palavra que não constrói laço.

E que a nossa vontade de viver e deixar viver não seja também seqüestrada, porque não há preço para tamanho resgate.

(VaneideDelmiro)



“A minha alma tá armada e apontada para cara do sossego / pois paz sem voz / paz sem voz / não é paz, é medo / às vezes eu falo com a vida / às vezes é ela quem diz / qual a paz que eu não quero conservar / pra tentar ser feliz...
(...) É pela paz que eu não quero seguir admitindo”

(A Minha Alma / O Rappa)



* Verso da composição Cuide Bem Do Seu Amor (Paralamas do Sucesso)

2 comentários:

Ludmila Clio disse...

"Meu repúdio ao silêncio que não engendra a paz e a palavra que não constrói laço."
Lindíssimo!
Teu texto me tirou todas as palavras!

Anônimo disse...

Acho q é impossível ficar imune a tudo isso; é no mínimo perplexo tantas barbaridades vistas por nossos olhos.
Fazendo uma reflexão profundo sob seu texto, vejo o quanto nós seres humanos nos tornamos irracionais.
Concorrdo com vc quando diz: "Mas a vida, de tão frágil, a vida não precisa tanto, se fere com muito menos. Sutilezas do falar e do calar atingem a alma humana, podendo mesmo mortificá-la." Então pergunto-me e o q é pior? A violência fisica ou da almar? Para e penso, violência é violência, não há tamanho... Que Deus nos perdoe!!!

ADOREIIIIIIIII
Marcelo Cavalcanti