sábado, 31 de janeiro de 2009

VIVER não é simplesmente...

Tempo Rei!
Oh Tempo Rei!
Oh Tempo Rei!
Transformai
As velhas formas do viver
Ensinai-me
Oh Pai!
O que eu, ainda não sei
Mãe Senhora do Perpétuo
Socorrei!...


(Gilberto Gil / Tempo Rei)




Esquecida do ano novo e da celeridade de um janeiro quase ido, seus sentidos se voltavam, tão somente, para a brisa festiva daquela manhã, lhe saldando através da janela do ônibus.

A uma altura do caminho, o encontro céu-mar confundia-se num azul-cumplicidade. Momentos raros nos quais se deixava ir, sem indagar como, onde, por que...

Seguia em puro silêncio, numa harmonia gritante, quando um colega a cumprimentou, sentando-se ao seu lado.

Ali iniciaram uma conversa despretensiosa sobre a beleza do dia, o escaldante verão, o tempo decorrido desde a última vez que se encontraram – também no ônibus –, ambos a caminho do trabalho.

O destino final se aproximava, adiantou-se temendo perder a parada. Despediu-se do colega desejando reencontrá-lo para mais uma itinerante conversa matinal.

Nada fora do script. Tudo sob controle, supôs, até ser surpreendida por uma desconcertante e inesperada pergunta: – "E então, quais seus planos para 2009?"

Como pôde? Foi seu primeiro pensamento. Se já era difícil admitir intimamente a escassez de sonhos, a ausência de projetos, a incapacidade de idealizá-los, imagina fazê-lo publicamente, diante da curiosidade dos olhares de outros passageiros. Reabriu-se a Inquisição.

Tentando livrar-se do embaraço a que repentinamente se viu envolta, ensaiou uma resposta qualquer, a única possível na ocasião:

– "Bem", (quando se começa uma frase assim significa, no mínimo, que não há nada bem), "não fiz planos, não pensei a respeito, quis fazer diferente..." Que vexame! Que viagem!

E tão vacilante quanto a sua resposta foram os seus passos em direção a saída. A porta do ônibus se fechou. Atrás de si, todos os olhares, inclassificáveis. Adiante, um futuro não planejado, incerto talvez. Sob sua cabeça, um azul incrivelmente desbotado.

A pergunta repercutiu ao longo dos dias. Agora, era ela quem se perguntava por que não fora capaz de responder que seu projeto consistia simplesmente em VIVER. Parecia-lhe uma resposta razoável, original, inteligente, e em parte verdadeira. Mas por que não lhe ocorreu?

Ao longo dos dias compreendeu sua incapacidade, porque VIVER não é simplesmente, mas bem que poderia, desejava. E em seu desejo a verdade era inteira.

(VaneideDelmiro)




"Acho espantoso viver, acumular memórias, afetos..."
(Caio Fernando Abreu)


"Não se preocupe em entender. Viver ultrapassa todo entendimento"
(Clarice Lispector)

domingo, 25 de janeiro de 2009

Onde estão?














(Arte: Mariana Massarani)



Onde Estão?
(Composição: Samuel Rosa / Nando Reis)


Fecho os olhos
Peço para Deus
Que possa atender
Esses versos e prosa
Que eu deixei
E eu não sei
Se irão
Tocá-lo em servidão

Abro a porta
Olho para o céu
Será que já choveu?
No jardim essas rosas
Que eu plantei
E eu não sei
Se estão
Mortas ou em botão


E eu me perguntei:
Onde estão
Todas as crianças
Todas as pessoas
Que eu já chamei
Que eu procurei aqui
E que eu tanto amei?
Onde estão meus irmãos?
Onde estão?


Abro os braços
Tanta emoção
Quando eu irei te ver?

No jardim, essas rosas
Que eu plantei
Mas eu não sei
Se irão
Abrir esses botões

Fecho os olhos
Peço para Deus
Que tente entender
Esses versos e prosa
Que eu não sei
Se eu deixei
Em vão
Tocar a imensidão

E eu me perguntei:
Onde estão
Todas as crianças
Todas as pessoas
Que eu já chamei
Que eu procurei aqui
E que eu tanto amei?
Onde estão meus irmãos?
Onde estão?

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Amor em Minúscula

Eis o nome do primeiro livro lido em 2009. De antemão devo dizer que a leitura foi determinada antes pelo título do que por qualquer outra informação prévia. O autor? Francesc Miralles, um escritor espanhol que até então desconhecia.

Amor em Minúscula foi um título tão sugestivo que me fez abortar temporariamente a leitura já iniciada de Morte em Veneza (Thomas Mann).

Sinceramente, mesmo depois de alguns dias, concluída a leitura, não consigo identificar com clareza o que me fez gostar do livro e lê-lo em tão pouco tempo.

A realidade é que o livro permanece pulsando, me impelindo a reabri-lo, a reler e refletir sobre algumas de suas passagens. Já na epígrafe encontra-se:

“Desfrute as pequenas coisas porque talvez um dia você olhe pra trás e se dê conta de que eram as grandes coisas.” (Robert Brault)

Até aí, nada de excepcional. É bem provável que boa parte de nós já tenha se dado conta disso, quiçá de maneira estarrecedora. Assim, vou descobrindo – me permito –encontrar alguns indícios que traduzem a minha simpatia por Amor em Minúscula.

O livro aborda a vida de um professor universitário solitário (Samuel) que em sua rotina entediante é surpreendido por algo inusitado – a visita inesperada de um gato desconhecido em seu apartamento.

Mishima, como passa a ser chamado por seu novo dono, é o ponto de partida para toda uma série de acontecimentos na vida de Samuel, levando-o a um resgate: “retrocedi trinta anos, até uma tarde de sábado que acreditava esquecida.”

A partir daí, a louca e misteriosa engranagem da vida, até então emperrada, começa a mover-se. É simplesmente maravilhoso que a imobilidade de uma peça seja vencida, ainda que pela força do insuspeitável, ainda que provoque ruídos indesejáveis, reações adversas.

É maravilhoso que isso aconteça, ainda que num romance.

... O amor tem suas minúcias... O cotidiano, a vida, esses então, não ficam atrás.


(VaneideDelmiro)



Seguem trechos do livro:

“FALTAVA UM SUSPIRO para que o ano acabasse e começasse outro. Invenção humana para vender calendários. Afinal de contas, decidimos arbitrariamente quando começam os anos, os meses e até as horas.”

“Enquanto colocava sobre a solitária mesa de jantar uma garrafa pequena de champanhe e 12 uvas, eu pensava nas horas. Havia lido em um livro que as baterias da vida humana se esgotam ao cabo de 650 mil horas.”

“(...) A questão era: quantos milhares de horas eu já desperdiçará?
Faltando pouco para aquele 31 de dezembro, minha vida não havia sido exatamente uma aventura.”


"Já estou em um ano novo”, foi meu último pensamento, “mas nada de novo virá”. E adormeci ignorando o quanto me equivocava.”

“Não suspeitava que o ano-novo fosse me reservar uma surpresa pequena, mas de efeito devastador. Como o movimento das asas de uma borboleta que causa um cataclismo do outro lado do globo, aproximava-se um vendaval que derrubaria as falsas paredes entre as quais minha vida fora encenada até então. Não há metereologistas capazes de prever esse tipo de temporal.”


"Você passa a vida em um cárcere que construiu para si mesmo e um dia batem à porta. Alguém veio buscá-lo e você acha que nunca mais ficará sozinho. Mas o que acontece quando você abre a porta e percebe que não há ninguém atrás dela? E se já foi embora? Talvez para você a batida fosse um convite a um longo passeio, tão longo que poderia durar uma vida, enquanto que para a outra pessoa as batidas tivessem um objetivo mais simples: confirmar que a porta ainda soava."


"Toda luz tem sua sombra. As pessoas aparentemente mais simples ocultam um mundo no qual acontecem coisas impensáveis. Quando penetramos nele por acaso, somos invadidos por um sentimento de desconcerto e temor, como quem invade um jardim alheio.
De repente nos damos conta de que algo que sempre estivera ali nos passara despercebido. O passo seguinte é ampliar o território de dúvida aos campos contíguos. A partir daí, a região da sombra pode nos levar a lugares nunca imaginados. Afinal de contas, o reverso da moeda ocupa a mesma superfície que seu oposto.
Você pode descobrir que não sabia nada de alguém que vive ao seu lado, ou que até agora fechava os olhos para não vê-lo. E desejaria que esta primeira revelação – que rompeu a doce rotina – não tivesse chegado nunca.
Por isso, às vezes, é conveniente não querer saber tudo."



“– Faltam muitas palavras a inventar. Por que existe o termo “órfão”, aplicado a uma criança que perde sua mãe, e não existe termo para a mãe que perdeu seu filho? Será porque sofre menos?
– Você tem razão. Agora que estou pensando nisso, tenho um significado à procura de uma palavra: amor em minúscula.
– Amor em minúscula?
– Sim, talvez seja a única descoberta de que tenho orgulho – disse exaltado. – Uma pessoa faz um pequeno gesto bondoso e isso desata uma cadeia de acontecimentos que lhe devolvem um amor multiplicado. Ao final, embora você queira voltar ao ponto de partida, não é mais possível, porque o amor em minúscula apagou qualquer caminho de volta ao que existira antes.
– Isso que você diz é bonito, embora não consiga entender.
– Nem eu próprio entendo. Mas a prova disso é que estamos aqui”



Miralles, Francesc. Amor em Minúscula. Rio de Janeiro: Record, 2008.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Mon petit poète

Foi desse jeito terno, poético e encantador que João me falou sobre a despedida de seu tio Coni (meu irmão) ao deixá-los na França, no início deste ano:

Tia,

Foi uma despedida de águas,
Mas a felicidade correu em nós.


(João Pedro Delmiro)



João, obrigada por me deixar postar tão bela poesia aqui.

domingo, 11 de janeiro de 2009

Irmanasse


(Detalhe dA Criação de Adão /
Arte: Michelangelo)



À MD.

Sem ser pássaro
soube da asa,
partida.

Distante do mar,
agitou-se
qual ondas intranquilas.

Feito noite
refletiu a escuridão,
ao clarão do meio-dia.

Não sendo o outro
irmanou-se, corpo-e-alma,
a dor sofrida.

(VaneideDelmiro)



"Que noite mais funda calunga
No porão de um navio negreiro
Que viagem mais longa candonga
Ouvindo o batuque das ondas
Compasso de um coração de pássaro
No fundo do cativeiro
(...)
Dor é o lugar mais fundo
É o umbigo do mundo
É o fundo do mar"

(Yá Yá Massemba - Roberto Mendes / Capinam)