sábado, 30 de maio de 2009

Dos desejos (que se encontram...)

Como quem entrega um presente, um dia me confidenciou seu desejo de ser um livro...
Em seguida, indagou-me com a expectativa de uma possível reprovação:
Isso não te parece uma idéia maluca?
Concordei de pronto:
Parece sim, como a minha – ser a poesia impressa em cada folha tua.

E nos pusemos a imaginar, loucamente, a noite de autógrafos...


(VaneideDelmiro)



"E quem um dia irá dizer
Que existe razão

Nas coisas feitas pelo coração?
E quem irá dizer
Que não existe razão!"
(Renato Russo, em Eduardo e Mônica)

terça-feira, 26 de maio de 2009

Palavra-semente





(Arte: Van Gogh - O Semeador)


À Socorro Dantas, em seu aniversário (27/05)


Se conheces a arte de semear estrelas, eu não sei – embora desconfie.

No entanto, certifico o manejo primoroso com a palavra, seus avessos e reversos, o que não se diz e o que escapa, nas demandas de horas marcadas e remarcadas.

Grata por cada palavra-semente acolhida e semeada, nos tempos de fartas colheitas e de searas escassas.

(VaneideDelmiro)



"Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é sua fineza de atenção."
(João Guimarães Rosa, Grande Sertão: veredas)

sábado, 23 de maio de 2009

Os (in)cautos desejos da folha em branco


Queria o deslizar suave e macio da caneta descobrindo a textura de seu papel intocado.

Suas margens sonhavam expandir-se, sem resistência, à inscrição de cada palavra nova - impressa, escrita, talhada - dando-lhe a certeza, ainda que falsa, de um além-fronteira.

Esperava iluminar-se como lâmpadas em postes enfileirados, letra-após-letra.

Extasiava-lhe a idéia da tinta penetrar seus poros, atingi-la quiçá pelo avesso e marcar sua existência.

Que descobrissem seus contornos, suas imperfeições, suas possíveis dobras, o cheiro do novo e do velho, o mudo convite, a carta escondida, a poesia inconfessa, os entre ditos nas entrelinhas.

Seu fino arcabouço prestaria-se palco à estória mais linda, sem menosdesprezar a possível tragédia. De bom grado aceitaria até mesmo os rascunhos às pressas, os rabiscos livres de preocupações estéticas.

Que lhe arrebatassem das prateleiras, dos armários de aço, das gavetas encerradas, dos pacotes empilhados, da infame vida reprodutiva das fotocopiadoras, porque desejava uma outra condição, na condução da palavra.

(VaneideDelmiro)



segunda-feira, 18 de maio de 2009

Padecimentos









(Arte: Oswaldo Guayasamín - Las manos del silencio)



Novamente o silêncio invade a casa. Resoluto, não espera mais à porta. Familiar, não expressa timidez. Severo, abate todas as asas.

Fita-me com seus grandes olhos mudos, esperando respostas que não tenho pras perguntas que nem fez.

Deixa claro, ali parado, quase inerte, que não pretende partir em definitivo. Melhor perder, se há alguma, a esperança, afinal a vida em seus mistérios pode calar qualquer explicação.

Isso nitidamente o consola, mas a mim, a mim cuja sede de palavras é irrefreável, desola.

E na vã tentativa de não afugentar ainda mais o que já não existe, sigo sussurrando uma prece:

– Senhor, faz-me aceitar a assepsia da página, o vazio das linhas, a brancura da tela, os rabiscos abortados, a mudez das teclas, a paralisia das mãos, o repouso dessa língua, etérea. E que diante da perplexidade de tudo o que não há, eu consiga calar. Que a palavra sendo larva não irrompa seu casulo antes de poder experimentá-lo. E já que padeci de palavras, Senhor, ensina-me também a padecer de silêncios.

Amém!


(VaneideDelmiro)

segunda-feira, 11 de maio de 2009

A quinta-essência






(Arte: Pablo Picasso)


Advertiu-me:
- Do sonho,
te contarei apenas
a curta parte...


Se censura ou mero esquecimento
não se sabe...


Considerei, sim, a arte
de revelar-me a quinta-essência.


(VaneideDelmiro - 10/05/2009)


"O que fazes por sonhar é o mundo que virá,
pra ti... e para mim..."
(Renato Russo - 1º de Julho)

domingo, 3 de maio de 2009

Por dentro

Não era receita nem nada. Mas as palavras e os (des)afetos chegavam como ingredientes: uma pitada de maldade, porções generosas de mentira, colheres de egoísmo, xícaras de imprudência, medidas de arrependimento, lascas de curiosidade alheia.

Tudo cuidadosamente misturado e despejado em fôrma previamente aquecida e untada com covardia.

Talvez a fome fosse tanta que não se deu conta do prato que ia sendo preparado, do aroma desagradável que se acentuava minuto após minuto.

Como poderia ser diferente? Ao final, tinha a sua frente uma coisa feia, bem feia, medonha: intragável, disforme, indigesta, assim como passara a se sentir por dentro.


(VaneideDelmiro)



“(...) faz de conta que ela não estava chorando por dentro – pois mansamente, embora de olhos secos,
o coração estava molhado; ela saíra agora da voracidade de viver."
(Clarice Lispector)

"(...) garrava a ter nôjo de mim no meio dos outros."
"(...) me sentir pior de sorte que uma pulga entre dois dedos." .
"(...) grande vão, eu atravessava."
(João Guimarães Rosa - Grande Sertão: veredas)

sábado, 2 de maio de 2009

Ressaca



É que já se sentia cansada e, não bastasse, assaltava-lhe o temor.

Era início de maio, deveria estar feliz pela passagem dos dias. Podia algo surpreendentemente bom acontecer e soprar pras curvas do esquecimento tudo que foi equívoco, loucura, precipitação.

Quem sabe a possibilidade de acreditar de novo? Quem sabe o novo acordando uma antiga emoção? Talvez, um novo sentido pras horas, a melodia de inéditas canções, outros pedidos na mesma oração...

De resto, cabia esperar que o movimento violento e ensurdecedor das ondas cessasse de lhe arremessar de si contra si.


(VaneideDelmiro)



"Meu coração restava cheio de coisas movimentadas".
"Aquele dia tinha sido forte coisa. De longe e sossego eu careci, demais".
(João Guimarães RosA - Grande Sertão: veredas)