domingo, 27 de julho de 2008

Mudança de tempo...




Voltar lá é estranho, porque não consigo concebê-lo naquele lugar. Não o identifico ali, apesar da inscrição de seu nome na lápide. Não vejo seu bigode expansivo, não ouço sua voz de trovão, nem sinto a segurança tão certa vinda de suas mãos.

Mesmo assim, arrisquei uma conversa silenciosa, levando notícias do mundo de cá que, depois de sua partida, já nem sei se não é o próprio mundo de lá...

(...)

Oi! Como é que o senhor tá? Eu sei, nove meses se passaram... Uhm? Ah, são essas poças d'água pelo caminho, mas já vou subir a barra da calça. Pronto, assim... Melhorou?

Eu? Estou bem...

No trabalho? Por favor, não me repreenda. Tenho tentado, de verdade... Mas ainda chego atrasada no trabalho e, nessas ocasiões, não consigo olhar nos olhos dos colegas. Não convém explicar a noite mal-dormida. Quem acreditaria, dia-após-dia, noite-após-noite?

O caminho até o ponto de ônibus é longuííííííííssiiiiimo de lembranças, de quando íamos "jogando conversa fora", discutindo o noticiário, o aumento da gasolina, o trânsito, um ou outro fato pitoresco - nosso jeito de construir cumplicidade. Eram momentos aparentemente banais, mas eu sabia que deixariam um enorme buraco quando não mais pudessem acontecer. Eu tinha razão. Ao menos uma vez.

Todas às vezes que saio dirigindo, são tuas recomendações que me fazem companhia: "não ande ligeiro", "preste atenção na pista molhada", "cuidado onde estaciona", "é melhor não sair à noite", "volte cedo", "ligue avisando que chegou", "não dê carona a ninguém desconhecido..." Engraçado, eu que sempre andava sozinha, agora ando muito mais.

Tenho uma notícia que talvez não lhe agrade muito. Foi necessário cortar um dos pés de figo do quintal. Danou-se num crescimento desordenado, meio revoltoso. Já adulto - e com saudades - não foi possível contê-lo. Passado uns dias, trouxe da Bica uma muda de "brasileirinho". Sabe qual é? Talvez não esteja ligando o nome à aparência da árvore. Mas, certamente, o senhor já viu. Ah, pronto, tá vendo ali em frente, do outro lado daquele túmulo, logo ali em frente, aquela árvore com folhas verdes e amarelas? É ela. Gostou? Que bom! Puxa... É bem aqui em frente... Não, não foi nada não. É que agora, falando com o senhor, me dou conta. De quê? Ah, do quanto essa árvore é bonita...

Lá no quintal eu gosto de acompanhar o desabrochar de suas folhas. Criei o hábito, ao sair e ao retornar, de trocar dois dedos de prosa com ela, em silêncio, assim como agora. Apesar de ainda pequena, já traz beleza e um filhotinho de sombra, quando de repente tudo ficou feio e árido demais.

Vou toda sexta-feira. Faça chuva, faça sol. Mas não tão cedo quanto o senhor ia. A reforma no mercado central ainda não acabou e acho que se arrastará por alguns meses. O acesso melhorou em algumas áreas, a higiene ainda deixa a desejar. Mas o que mudou mesmo foi o doce das frutas... Alguma coisa apodreceu, azedou...

Ah, claro. Acendo as duas lâmpadas do quarto quando vou ler, escrever... Mas a janela nunca mais abri. Não tenho vontade... E depois, tá muito frio também. É que o senhor sempre foi calorento. Aquela proteção contra o vento na janela resiste bravamente à ação do tempo. Num vento mais forte seus estalidos dizem: ele passou por aqui e cuidou de você.

Algumas coisas lá em casa não consigo revisitar. Talvez, um dia... A luz do banheiro queimou, a extensão telefônica, que era puro ruído, retirei. Não faz mal. Tocava pouco, e agora cada vez menos.

Os meninos? Vão, sim, lá em casa. Adoram aquela escada. Criança adora uma escada. Acho que desperta à imaginação. Eu lembrei, agora, das minhas fantasias em torno da escada: será que lá em cima morava o Minotauro do Sítio do Picapau Amarelo? E Papai Noel, na falta de uma chaminé, desceria por ela? A escada era a travessia de minhas veredas. Tá vendo, fui m'embora escada a dentro ou será escada à fora?

É, eu falava dos meninos. Carolina é quem me visita com maior freqüência. Não se importa com a bagunça do meu quarto, acho que pra não me ferir, e brinca a valer. Ainda pede pra dormir. Na hora do jantar, o mesmo pedido: "tia, assa queijo de coalho pra mim!" Ela adora. Não se preocupe, não vou deixar faltar. Se ela continua magrinha? Então! Lembra do quanto a gente ria quando o senhor perguntava se faltava comida na casa dela...

Outro dia, ela perguntou se eu tava triste porque o senhor tinha ido embora. Na ocasião, João estava próximo e nem me deixou responder. Disse, no alto de sua sensibilidade e sabedoria, que saudade de quem a gente ama é pra vida toda. Aquele João...

Thiago, o senhor não acreditaria como ele cresceu. Acho que já ultrapassou a minha altura, nem sei mais que número calça. O preto tá ficando cada vez mais bonito e inteligente. E tudo que Carol não come, ele come em dobro.

Lembramos sempre do senhor.

O que eu tenho feito? Quais são os meus planos? Bem, não queria decepcioná-lo...

Ih, começou a chover forte. Espera um pouco, vou abrir minha sombrinha. Tá surpreso, né? Pois é, finalmente, aceitei seu conselho, comprei uma sombrinha e esta é primeira que estou usando...


Saudade, padrinho. Toda a saudade.

sábado, 26 de julho de 2008

À Padrinho...








NOCAUTE

Eu tinha tudo pra estar feliz...
Mas a boa nova da primavera passada
não anunciou cores.

E num só golpe
– ferino, mortal –
condenou-me a viver sem flores.


(VaneideDelmiro – 20/07/2008 - Arte: Miró)

sábado, 19 de julho de 2008

As aparências enganam...

(Arte: Mariana Massarani)


REC(L)USA

Hoje tem show do Osvaldo,
mas eu não vou.
Tem missa naquela igrejinha simpática,
mas eu não vou.
E tapioca na feirinha de Tambaú,
mas eu não vou.

Se o telefone tocar
definitivamente, eu não estou.
E quando chamam meu nome
– não é maldade –
só ignoro porque não sou.

(VaneideDelmiro)



Nota (Em 22/07/2008)
Embora não costume fazer alterações nos textos depois que são postados, hoje resolvi acrescentar a letra (L) ao título do poema acima. Agora tem-se: REC(L)USA. Isto se deu a partir de um comentário da minha querida amiga, Lourdinha, que soube perceber, em sua sensibilidade humanamente poética, o que eu não consegui dizer. Obrigada, Lourdinha! Tê-la como leitora muito me honra, mas poder partilhar de sua amizade é algo que extrapola o poder descritivo das palavras.

Gêmeos com ascendente em gêmeos

(Arte: Mariana Massarani)


EU SOU EM EXCESSSSO...
(VaneideDelmiro)

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Asas, palavra! Dá-me asas!



"A liberdade dá medo. Os homens são pássaros que amam o vôo mas têm medo dos abismos. Por isso abandonam o vôo e se trancam em gaiolas"

Rubem Alves, em Palavra de Grande Inquisitor. Foi também nessa crônica que encontrei um maravilhoso poema...


"Ah, quanta vez, na hora suave
Em que me esqueço,
Vejo passar um vôo de ave
E me entristeço!

Porque é ligeiro, leve, certo
No ar de amavio?
Porque vai sob o céu aberto
Sem um desvio?

Porque ter asas simboliza
A liberdade
Que a vida nega e a alma precisa?
Sei que me invade
Um horror de me ter que cobre
Como uma cheia
Meu coração, e entorna sobre
Minh'alma alheia

Um desejo, não de ser ave.
Mas de poder
Ter não sei quê do vôo suave
Dentro do meu ser"


(Fernando Pessoa / Arte: Mariana Massarani)

sábado, 5 de julho de 2008

Ninguém é mais que um nome...

Sem exagero, eu teria pelo menos uma cem razões pra falar desta postagem hoje, porque é algo que venho pensando há tanto tempo (e experimentando também). Mas o que de fato me motivou foi uma conversa, na hora do almoço, com minha mãe e minha irmã.

Alguma coisa muita essencial abalou o delicado terreno das relações amorosas. Evitamos. Ponderamos. Recusamos. Duvidamos. Sabotamos. Temos medo. Enfim, desacreditamos.

Por outro lado, “bombam” as salas virtuais de bate papo, os candidados e candidatas – expressão interessante – nos programas de relacionamento que se propõem a traçar o seu perfil amoroso e encontrar a sua cara metade, com pouco mais de meia dúzia de perguntas e respostas.

Pra dizer a verdade, eu nem lembro como essa conversa foi sendo desenhada na hora do almoço, muito menos como terminou, mas enfim, ficou reverberando na volta pra casa, me batendo aquele sentimento de "sem você sou pá furada" (verso de Rodrigo Amarante, em Paquetá).

O jeito mesmo foi retomar um poema engavetado, de escrita recente e impressões antigas. Sem nome até então, passei a chamá-lo Ninguém. Mas Ninguém é mais que um nome...




“Ah, se eu agüento ouvir outro não
quem sabe um talvez ou um sim
eu mereça enfim.

É que eu já sei de cor
qual o quê dos quais
e poréns dos afins
pense bem
ou não pense assim!"

(Paquetá / Rodrigo Amarante – Los Hermanos)





NINGUÉM

Ninguém virtualmente atraente,
geograficamente distante,
intelectualmente brilhante,
ou sexualmente fascinante...

Ninguém que ressurja das cinzas
com planos mirabolantes,
me prometendo agora
um futuro radiante.

“Ficar”, só se for de fora.
Aqui dentro uma lei impera:
é preciso amor PULsanTE.

Amor platônico? Sem chance.
Prefiro o amor plutônico
que balança o rabo
e, na minha chegada,
late exultante.

Pseudônimos, enigmas, entrelinhas:
deixo-os à cartomante
(ou a quem puder servir).

Careço dá vida aos sentidos
para não morrer de fome
na condição de mulher amada à amante.

Obs.:
Dispenso a mais fina etiqueta,
a conta bancária esbanjante
e todas as declarações
em outdoors, faixas, auto-falantes.

Só não abro mão de quem
verdadeiramente me encante
e faça da palavra, a flecha
E de mim, seu alvo constante.


(VaneideDelmiro)

quinta-feira, 3 de julho de 2008

"Porque o poeta é irmão do escondido das gentes..."

"E também é verdade que um escritor enquanto ser humano fica absorvido demais em tentar compreender a si mesmo e ao outro, e não suficientemente mestre do resto de sua vida. Hoje estou menos explícita, mas quem sabe se alguém vai entender o que pretendi dizer através deste meu poema:


Tudo vive em mim. Tudo se estranha
Na minha tumultuada vida. E porisso
Não te enganes, homem, meu irmão,
Quando dizes na noite, que só a mim me vejo.
Vendo-me a mim, a ti. E a esses que passam
Nas manhãs, carregados de medo, de pobreza,
O olhar agudo, todos eles em mim.
Porque o poeta é o irmão do escondido das gentes
Descobre além da aparência, é antes de tudo
LIVRE, e porisso conhece. Quando o poeta fala
Fala do seu quarto, não fala do palanque,
Não está no comício, não deseja riqueza
Não barganha, sabe que o ouro é sangue
Tem olhos no espírito do homem
No possível infinito. Sabe de cada um
A própria fome. E porque é assim, eu te peço:
Escuta-me. Olha-me. Enquanto vive um poeta
O homem está vivo."


(Hilda Hilst - Paixões e Máscaras, do livro: Cacos & Carícias & Outras Crônicas, 2007)

terça-feira, 1 de julho de 2008

Asa da Palavra - 1 ano

"O que fazes sem pensar aprendeste do olhar
E das palavras que guardei pra ti
(...)
O que sabes fazer agora
Veio tudo de nossas horas
Eu não minto, eu não sou assim"

(Renato Russo - 1º de Julho)



Hoje o Asa da Palavra faz exatamente um ano de existência... Não sei exatamente o que isto significa, pois tudo é ainda pura descoberta.

Eu não queria postar nada em tom de cumprimento, correria o risco de soar narcísico demais. Tampouco diria do que sinto.

No entanto, gostaria de agradecer, muito carinhosamente, a todos que pousaram aqui suas palavras e/ou também seus silêncios; aos que visitam rotineira ou esporadicamente este blog e lhe dão e renovam alguns de seus sentidos.

Não posso esquecer ainda que este espaço foi e tem sido um passaporte através do qual conheci blogs e pessoas muito interessantes, que revigoram a minha ligação com a Palavra, sem a qual eu não estaria muda, mas morta.



Embora a frase seguinte lembre tanto Clarice Lispector, é do Rubem Fonseca. Hoje, ela dá sentido a este blog.

"Fabricarei uma solidão externa para que a minha interna e enorme solidão não se quebre contra o mundo"